sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A IMAGEM PROIBIDA - UMA HISTÓRIA INTELECTUAL DA ICONOCLASTIA

Um Rafael sem mãos

Jorge Coli
ALAIN BESANÇON

Na tragédia "Emilia Galotti", Lessing dá a palavra a um pintor, que se exprime assim: "Ah! Por que não pintamos apenas com nossos olhos! Do olho ao pincel, pelo desvio do braço, tanto se perde! -Mas ao dizê-lo, ao dizer que eu sei tudo o que se perde, e como isso se perde, e por que isso não pode perder-se assim, fico orgulhoso e, mesmo, mais orgulhoso que eu posso ser de tudo aquilo que eu deixei se perder. É assim que reconheço ser um grande pintor, ao passo que minha mão nem sempre o é. -Ou pensais, Príncipe, que, se por infelicidade, Rafael tivesse nascido sem mãos, ele não teria sido o maior gênio da pintura?".
O disparate de um Rafael sem mãos é irônico e engraçado. Ele revela, porém uma questão mais profunda. Panofsky tomou a imagem como metáfora central em seu "Idea". Mas atribuiu a ela um sentido diverso do que Lessing nos diz, em 1772. Lessing tem uma postura que, retrospectivamente, parece divergir, à primeira vista, daquilo que seria um século mais tarde o impressionismo, já definido -de modo bastante justo- como uma ligação direta entre o olho e a mão, sem passar pelo cérebro. Na tragédia, a mão é dita incapaz de traduzir aquilo que o olho capta. Entretanto, de qualquer forma, estamos sempre, como no impressionismo, diante da determinação de um campo sensorial onde não intervém o pensamento.
É compreensível. As reflexões sobre a arte desenvolvidas a partir da metade do século 18 provocaram um deslocamento dentro da grande tradição ocidental que tomava como parâmetro filosófico a noção de belo. Esta noção, concebida abstratamente, deixa de reinar soberana nos tempos de Lessing para dar lugar à consideração das relações transcorridas no sensível entre o objeto artístico (e não mais a arte) e a percepção do espectador (e não o pensamento abstrato). O princípio da "estesia" -noção vinculada aos sentidos, à sensibilidade- permitirá que Baumgarten disserte, nos anos de 1750, a respeito de um erudito neologismo: a estética. Disciplina que não surge portanto como uma interrogação sobre o belo enquanto abstração, mas como a análise das relações entre o sujeito -concreto- que percebe e o objeto -concreto- que é percebido. Apenas para lembrança: Winckelmann escreveria, nos anos de 1762, suas "Reflexões Sobre o Sentimento do Belo nas Obras de Arte e Sobre os Meios de Adquiri-lo": programa bastante explícito, em que o belo deixou de ser uma idéia para transformar-se em sentimento e em que é possível encontrar um método para adquirir esse sentimento que, para Winckelmann, determina-se no contato empírico com as obras do passado greco-latino e não numa ascese da alma capaz de nos levar para uma contemplação espiritual fora do mundo sensível. Já se disse, com propriedade, que a estética de Winckelmann é antes uma erótica.
Ora, Panofsky ficou fascinado pela idéia irônica de Lessing, mas restaurou-a no campo da reflexão sobre o belo, transformando-a num esplêndido paradoxo heurístico. Panofsky desconsidera essas relações que, no século 18, iam do sensível ao sensível. Ao tomar o princípio de um "Rafael sem mãos", exprime as ligações, sempre dificultosas dentro das artes visuais, entre sensível e inteligível. Para tanto, suprime o olho proto-impressionista do pintor de Lessing, instaurando um outro olho, o do intelecto, capaz de ver o invisível. "Rafael sem mãos" passa a significar não mais a incapacidade da mão diante da visualidade, mas a incapacidade da mão diante do intelecto. Não há mais ironia: as belas formas dentro da mente de Rafael podem ser não apenas superiores àquelas que o grande pintor encarnou no mundo sensível, mas são até mesmo independentes dessa encarnação para existirem.
E chegamos, enfim, ao livro que eu deveria já estar resenhando aqui, "A Imagem Proibida" de Alain Besançon, cujo título brasileiro explicita ainda, de modo pertinente: "Uma História Intelectual da Iconoclastia". Pelo "intelectual" afasta-se uma trajetória que seria mais propriamente iconoclasta, no seu sentido etimológico concreto de imagem quebrada, para privilegiar o pensamento que presidiu à negação das imagens, dando uma larga atenção às discussões vinculadas ao divino. Não temos, assim, os coptas do baixo Egito, que martelavam os relevos dos antigos templos, nem Savonarola queimando ídolos na sua Fogueira das Vaidades. Isto é, não temos os objetos destruídos ou ocultados, não temos o avesso da história das artes. Temos filosofias e teologias querendo impedir que as imagens existam.
Pelas amostras trazidas na contracapa, o livro obteve críticas elogiosas na França. Compreende-se: o tema é muito sedutor e a obra altamente ambiciosa. Ela parte dos gregos para chegar ao século 20, apoiada num feixe denso de referências. Trata-se efetivamente de um livro indispensável. Infelizmente, somos tentados a escrever.
As relações complexas entre o sensível e o inteligível nas artes -esse inteligível que não cessa de confundir-se com o divino-, tais como foram traçadas por Panofsky em "Idea", ao mostrar uma continuidade metamórfica, ao indicar os problemas recolocados a cada vez em configurações novas, em que a mente e a mão solucionam, de modos diversos, as sucessivas aporias -ou seja, esse brilho revelador de "Idea"- estão inteiramente ausentes de "A Imagem Proibida".
O livro denuncia, em seu autor, a boa e sólida formação das chamadas "grandes escolas" francesas: capacidade de ler metodicamente a bibliografia adequada, ordenar as partes do texto em límpidas divisões e subdivisões, e, enfim, resumir -exercício que os franceses começam a praticar bem cedo, fazendo uma inevitável "redução ao terço", onde aprendem a separar o "essencial" do "supérfluo".
Todas essas excelentes virtudes o autor possui. Decerto, leu conscienciosamente os escritos originais a que se refere, mas ordena-os a partir de outros textos de síntese, bastante conhecidos. Assinala honestamente todas as suas dívidas.A referência a "Le Renouveau de la Peinture Réligieuse en France", de Bruno Foucart, é significativa. A ele é feita uma homenagem na introdução da obra, e também um agradecimento a Schnapper, um dos primeiros leitores do manuscrito. Foucart e Schnapper são dois conhecidos historiadores da arte, que também fizeram livros indispensáveis, não exatamente pela inteligência analítica ou pela síntese reveladora, mas, no caso do primeiro, por arrolar, com paixão, obras e documentos voltados para um setor ainda pouco estudado das artes e, no caso do segundo, por compilar, com erudição, tudo aquilo que se refere ao pintor Jacques-Louis David. Eles lembram aliás, o caso do inevitável Rewald, grande historiador do impressionismo, pela paciência com que, minuciosamente, agregou o maior número de dados possíveis sobre a questão.
Por essas razões, todos os três fizeram livros indispensáveis. É claro que não se encaixam na categoria dos de um Focillon, de um Longhi ou de um Panofsky. Mas indispensáveis ainda assim, porque são fontes preciosas de informação.
Os modelos de Alain Besançon são Foucart e Schnapper. Há uma diferença, entretanto. Os dois historiadores da arte trabalham sobre campos circunscritos e precisos, trazendo material novo, sem a pretensão da grande síntese histórica através dos séculos, que é o caso de "A Imagem Proibida". Neste livro, o que se tem é um arrolar de capítulos ordenados cronologicamente e bem apresentados; se se quiser, um sério manual específico e sintético sobre a questão, de leitura um pouco laboriosa, porque os tecidos condutores se esgarçam continuamente. Se alguém trabalhar sobre temas voltados para os pensamentos que recusam a imagem terá, por obrigação, que referir-se à obra de Besançon, pois ela reúne o conjunto de temas, de referências bibliográficas e os resumos sucessivos. É inevitável que, focalizando mais de perto cada questão, vejamos surgir o caráter forçosamente grosseiro do tratamento, às vezes bastante insatisfatório. Por mais que se faça, não é possível dar conta, em toda sua complexidade, do pensamento de Platão sobre as artes quando se dispõe apenas de 20 páginas. Mas o autor organiza, do modo mais claro que pode, os eixos que lhe parecem importantes em cada capítulo.
Auerbach, na trajetória do realismo dentro da literatura do Ocidente, que delineia mediante exemplos precisos, mostra, de modo admirável, a possibilidade do grande livro sintético e interpretativo, luminoso de inteligência. Panofsky desdobra, em "Idea", de outra maneira, procedimentos demonstrativos necessários que conduzem formas de pensamento através do tempo. Talvez Besançon tivesse ambições tão elevadas quanto as dessas ilustres referências. Mas aqueles foram livros excepcionais que brotaram a partir de uma cultura e de preocupações vividas longamente. Besançon fez, em verdade, um sólido compêndio que, tal como é, cumpre o seu papel.
Jorge Coli é professor de história da arte na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Folha de São Paulo

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