O tribunal de Deus na Bahia
Luiz Mott
A Santa Inquisição de santa só tinha mesmo o nome -posto que até a própria Igreja Católica reconhece hoje que sua existência foi um lamentável erro histórico e que a Divina Providência cochilou, ao permitir tantas torturas e fogueiras por quase três séculos, de 1536 a 1821, exatamente no período da infância e adolescência da América portuguesa. Daí as marcas indeléveis deixadas por esse monstro sagrado em nosso corpo e estrutura sociais.
Uma mostra evidente da onipresença da Inquisição em nosso quotidiano -além das crônicas jornalísticas semanais assinadas por nosso inquisidor-mor, D. Lucas Moreira Neves, líder nacional da Sagrada Congregação da Fé, nome moderno e disfarçado da mesma instituição- são as tradicionais elites nordestinas de hoje, descendentes diretas dos famigerados "familiares" do Santo Ofício. Grandes famílias baianas e pernambucanas -como a dos Calmon, Contreras, Pereira de Aragão etc.-, herdaram seu prestígio e riqueza de seus ancestrais espiões do Santo Tribunal de Lisboa.
Costuma-se chamar as inquisições ibéricas, da Espanha e Portugal de "inquisição moderna", para contrastar com as inquisições medievais, que na época tiveram atuação sobretudo na França e Itália. Em Portugal funcionaram três tribunais: Lisboa, Coimbra e Évora. O Brasil e a África estavam sujeitos ao tribunal lisboeta. O Oriente era vigiado pelo Tribunal de Goa, na Índia portuguesa. Nas terras onde não havia tribunal, lá estavam os comissários e familiares do Santo Ofício, verdadeiras pontas de lança desta terrível instituição, que tinham como função vigiar, denunciar e obedecer as ordens da Mesa Inquisitorial, quando mandava inquirir, prender e sequestrar os bens dos denunciados. Como tribunal religioso, à Inquisição cabia perseguir as heresias -judaísmo, protestantismo, feitiçarias, blasfêmias, proposições heréticas, e alguns desvios sexuais, notadamente a bigamia, as solicitações libidinosas feitas pelo sacerdote no ato da confissão sacramental e a sodomia, sob esta rubrica incluindo a cópula anal homo e heterossexual e, até os meados do século 17, também o lesbianismo.
"Confissões da Bahia", coleção de documentos sobre a primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil, representam o melhor retrato a cores, de corpo inteiro, da atuação deste "Monstrum Horribilem" na sociedade brasileira nos finais do primeiro século de sua existência. É um dos poucos textos onde podemos contemplar o Brasil tal qual naquelas fotos de álbuns de família, onde o neném é mostrado nuzinho, posto que o Tribunal do Santo Ofício perscrutava o mais íntimo das consciências, nada deixando de inquirir e perguntar, por mais cabeludo que fosse o desvio herético ou sexual.
Salvador ainda não contava meio século de fundada quando desembarca na Bahia de Todos os Santos o Visitador do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, o licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Vinha com poderes quase ilimitados, exigindo sujeição de todos os poderes constituídos à sua autoridade. Do bispo ao governador, passando pelos vereadores, toda a sociedade colonial teve de prestar irrestrita obediência ao emissário do Santo Ofício lisboeta.
Sua presença inesperada deve ter causado pânico na diminuta população da novel colônia, pois embora a Inquisição tivesse como lema "Justitita et Misericordia" e, verdade seja dita, menos de 1% dos denunciados chegaram à pena máxima da fogueira, o Santo Ofício mantinha como "modus operandi" o absoluto sigilo e segredo de todas suas ações e procedimentos, daí a insegurança de nossos colonos quando da chegada do Visitador e da solene abertura das atividades do Tribunal da Fé.
As confissões dos moradores da cidade da Bahia e de seu recôncavo constituem o conteúdo deste fantástico livro que até então só tivera duas edições raras e esgotadíssimas, a primeira em 1922 e a segunda em 1935, ambas vindo a lume graças ao tino do iluminado Capistrano de Abreu, que em ilustrada introdução, historia e situa a visitação no contexto inquisitorial. Como bom nordestino, machista e pudibundo, apesar de agnóstico declarado, advertia o leitor: "Das 121 confissões, fique de parte o referente ao pecado sexual contra a natureza (homossexualidade). O assunto melindroso exige habilidade singular em quem o aborda. Basta indicar as páginas inquinadas. Depois deste aviso, pode cada um evitá-las ou procurá-las a seu talante". No meu caso, confesso, a advertência serviu como estímulo, pois foram aquelas as primeiras páginas que corri a ler quando este precioso livro caiu em minhas mãos pela primeira vez.
Todos que leram os livros das Visitações Inquisitoriais às Partes do Brasil são unânimes em confirmar: trata-se de um livro fascinante, prenhe de material riquíssimo para se conhecer a intimidade religiosa, sexual, ideológica, social e econômica de nossos primeiros colonos. Além de revelar com graça e espontaneidade, a "rude" língua que nossos antepassados falavam e escreviam -língua aliás que só teve sua primeira gramática coincidentemente no mesmo ano em que é fundado o Santo Ofício: 1536.
Esta terceira edição tem como organizador Ronaldo Vainfas, autor de obras com citação obrigatória em tudo o que se escreve hoje em dia sobre nossa história das mentalidades no período colonial. Vainfas brinda o leitor com uma utilíssima introdução, que permite aos não iniciados uma leitura mais proveitosa de um texto que nem sempre é de fácil compreensão. Acompanham o texto 192 notas igualmente de grande valia pelo que esclarecem e pontuam tais confissões.
Não conheço leitor que não tenha se apaixonado pelas "Confissões do Santo Ofício": a variedade do cardápio temático nos insere no âmago do cotidiano do Nordeste brasileiro nas primeiras décadas de sua história; o tom dramático e tenso do monólogo dos confitentes envolvidos em condutas ou proposições heréticas; o conteúdo picante dos relatos ligados aos então chamados nefandos e abomináveis pecados contra a natureza; a esperteza e matreirice de alguns colonos em camuflar ou diminuir a gravidade de suas culpas -todos estes ingredientes fazem das "Confissões da Bahia" obra obrigatória para quantos queiram conhecer nosso passado a partir da pena dos opressores, mas da voz e do medo dos oprimidos.
Luiz Mott é professor da Universidade Federal da Bahia e autor de "Rosa Egipcíaca - Uma Santa Africana no Brasil".
Folha de São Paulo
ENQUANTO A "SANTA" MADRE IGREJA CATÓLICA VIGIAVA, PROCESSAVA, TORTURAVA E MATAVA QUEM ERA ACUSADO DE HERESIA, OS PADRES PRATICAVAM PEDOFILIA E SODOMIA COM OS COROINHAS E APRENDIZES DAS CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS, O QUE ERA UMA CLARA HIPOCRISIA DE UMA MORALIDADE QUE, NA VERDADE, ERA UMA FARSA.
ResponderExcluirQuanta hipocrisia perdurou por séculos dentro da Igreja Católica. Já não é mais segredo que os seus membros sempre praticaram a pedofilia e a sodomia com crianças e adolescentes. De que adianta esse "moralismo"? Sabemos muito bem que é uma verdeira farsa milenar. Enquanto muitos inocentes eram brutalmente torturados e queimados nas fogueiras, muitos padres se locupletavam sexualmente com os seus discípulos. Hoje a própria Igreja reconhece publicamente o seu grande erro; não há mais o que esconder. Proibir o sexo antes do casamento e o uso de camisinhas já não tem, no meu enteder, razão em pleno século XXI. O pecado não reside nesses fatores, e sim, na hipocrisia que sempre existiu nessa instituição.
ResponderExcluirProfessor Kleber Sobrinho - São Luís /MA