quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

ARQUITETURA

A moderna morada paulista

Abilio Guerra

A história da arquitetura moderna brasileira está, em grande parte, por se fazer. Carente ainda de obras de fôlego, que dêem conta das vicissitudes de sua evolução, ela se encontra, de forma fragmentária, confinada em revistas especializadas, teses acadêmicas e alguns poucos livros monográficos que, felizmente, se tornam publicações cada vez mais constantes. O levantamento, sistematização e publicação das obras dos principais arquitetos modernos brasileiros é o passo inicial e necessário para uma historiografia condizente com a qualidade e importância da produção arquitetônica brasileira deste século.
Lina Bo Bardi e Lucio Costa mereceram, há pouco tempo, edições bem cuidadas de suas obras. Agora chegou a vez de Oswaldo Bratke (1907-97) e Vilanova Artigas (1915-85), em dois livros lançados no final de 1997, que têm em comum o resgate da trajetória individual de cada um dos arquitetos retratados. Tal característica acentua-se com o formato "coletânea" comum a todas elas, em que se misturam textos críticos, memoriais e artigos de diferentes datas, depoimentos de amigos, parentes e admiradores, entrevistas publicadas e inéditas, devidamente ilustrados com projetos arquitetônicos e urbanísticos.
Os livros sobre Bratke e Artigas diferenciam-se em aspectos importantes. O ensaio de Hugo Segawa, abrindo o volume, sobre Bratke coordena muito bem o material que vem a seguir, resultando num feliz equilíbrio entre crítica, informação e iconografia, ao contrário da montagem um tanto confusa do livro sobre Artigas. A maior homogeneidade do primeiro é reforçada pela opção de se selecionar menos projetos para poder apresentá-los melhor, já que os desenhos, croquis e fotos sempre são acompanhados por um texto explicativo sucinto. No livro de Artigas, com um número muito maior de obras registradas, os textos são do próprio arquiteto e, muitas vezes, não se referem ao projeto que ladeiam. Em alguns momentos, a contiguidade de materiais tão díspares chega a causar estranhamento. Contudo, a bibliografia e a relação de obras estão muito mais elaboradas no livro de Artigas, cumprindo assim, com maior rigor, a intenção comum de ser fonte para outros trabalhos de pesquisa.
Apesar de um ou outro senão que possamos levantar, a leitura dos dois livros é obrigatória para os estudiosos e amantes da arquitetura. Afinal apresentam facetas distintas do mesmo processo: a formação e consolidação da arquitetura moderna em São Paulo. Nascido em 1907, em Botucatu, Oswaldo Arthur Bratke é apenas oito anos mais velho do que João Baptista Vilanova Artigas, de Curitiba, pequena diferença de idade que não impediu ao mais jovem começar sua vida profissional como estagiário do mais velho. As formações acadêmica e intelectual de ambos comportam algumas simetrias e antagonismos que, somados ao temperamento e postura profissional divergentes, acabam por explicar as trajetórias tão distintas, marcadas em termos de visibilidade pela ampla difusão do nome de Artigas -o fundador da chamada "Escola Paulista"- e pelo relativo ostracismo de Bratke, após a década de 70, quando praticamente abandonou a profissão.
Bratke formou-se na Escola de Engenharia do Mackenzie, Artigas na Escola Politécnica, as duas primeiras escolas a formarem engenheiros-arquitetos em São Paulo. A formação no Mackenzie, implantada por Christiano Stockler das Neves, balizava-se pelo curso frequentado por seu idealizador nos EUA, que, por sua vez, era fortemente influenciado pela École de Beaux-Arts de Paris. Assim, o Mackenzie mantinha algumas semelhanças com o estudo de arquitetura no Rio de Janeiro, contrastando com o ensino da Politécnica, onde imperava a visão técnica.
Segawa enxerga no francês Paul Cret, um dos organizadores do curso de arquitetura da Pensilvânia frequentado por Stockler das Neves, uma das grandes influências sofridas por Oswaldo Bratke. Cret, discípulo de uma ala progressista e racional da escola parisiense, defendia que a arquitetura era uma arte de resolver problemas atuais, visão pragmática e utilitária que acabou marcando toda uma geração de novos arquitetos americanos, em especial Louis Khan. Curiosamente, esta trajetória eclética, onde elementos da formação acadêmica se mesclam a princípios modernos, colocou Bratke em contato com a emergente arquitetura californiana, a mesma que seria a fonte do jovem Artigas. Enquanto Bratke faz uma trajetória análoga à de Kahn, de abandono paulatino do mimetismo historicista, Artigas vai buscar no modernismo já mais depurado de Frank Lloyd Wright sua primeira "verdade".
Entrar pela porta da frente do modernismo deu uma certa primazia ao arquiteto mais jovem. Na primeira casa de Artigas, construída em 1942, já é observável a "verdade dos materiais" defendida por Wright, pureza formal que Bratke só alcançará em 1947, quando constrói sua casa e ateliê na rua Avanhandava. Artigas não demoraria a romper com a escola californiana e, em 1949, já estava projetando a Casa Czapski, primeiro projeto onde surgem os elementos caraterísticos de sua arquitetura madura: a estrutura como principal articulador formal, a continuidade espacial entre o "exterior" e o "interior" obtida com a elevação por pilotis, o conflito formal entre empenas cegas de concreto armado e generosos panos de vidro, o dinamismo dos diversos pisos articulados por rampas.
Mudança tão radical jamais se observou na vida profissional de Bratke, marcada por uma evolução natural, contínua e irreversível, que defendia de maneira muito consciente. Sua relação com o cliente era de enorme respeito aos seus hábitos e mesmo idiossincrasias e jamais seria capaz de tentar condicionar com sua arquitetura um novo modo de vida, atitude recorrente em Artigas e, principalmente, em seus seguidores. As mudanças da arquitetura de Bratke espelhavam a mudança da própria sociedade e, se alguma pressão exercia, era de maneira branda e gradual. Sua contribuição deu-se fundamentalmente por meio de uma inesgotável capacidade de experimentar novas técnicas construtivas e novos materiais industrializados que, aliada à sua inventividade no desenho de componentes, criou um padrão de moradia que teria grande difusão e contribuiria em muito para a consolidação do "morar moderno" em São Paulo.
A marca fundamental de Vilanova Artigas era sua atitude radicalmente engajada, impulsionada pela crença na utopia da transformação social. A confluência de suas idéias políticas e culturais levou-o a um discurso combativo e ideologizado, que chegou ao público por intermédio de artigos provocadores e persuasivos. Professor desde muito cedo, é o grande ideólogo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, da qual é o autor tanto do projeto arquitetônico como da estrutura pedagógica. Foi fundador e membro participativo do Instituto de Arquitetos do Brasil e da União Internacional de Arquitetos. Sua presença destacada no conturbado cenário político dos anos 60 resultou em sua cassação pelo regime militar. São circunstâncias que o transformaram em mito e alavancaram sua produção à condição de paradigma de nossa arquitetura.
Os dois livros demonstram com grande agudeza o quanto Oswaldo Bratke e Vilanova Artigas participaram na conformação da arquitetura moderna de São Paulo, em especial para o desenho da "morada paulista" deste século, da qual os dois desenharam belíssimos espécimes. Donos de temperamentos antípodas e convicções divergentes quanto ao papel do arquiteto, contribuíram à sua maneira para o reconhecimento e valorização do profissional no seio da sociedade brasileira. Caberá à historiografia que agora se inicia, menos imersa nos embates político, ideológico e cultural dos tempos já idos, aferir o peso específico de cada um. Talvez chegue à conclusão de que o mito e o ostracismo sejam situações imerecidas, mas isto já é uma outra história.
Abilio Guerra é professor de arquitetura da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e editor da revista "Óculum".

Folha de São Paulo

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