sábado, 31 de janeiro de 2009

PORTUGAL NA ÉPOCA DA RESTAURAÇÃO


O homem barroco português

Evaldo Cabral De Mello
EDUARDO D'OLIVEIRA FRANÇA

Os livros se encantam ou porque nunca chegaram a ser escritos ou porque deixaram de ser publicados. Este último é o caso de "Portugal na Época da Restauração", desencantado por obra e graças de Fernando Novais. Apresentado como tese de cátedra à USP, em 1951, ocasião em que apenas se imprimiram os cem exemplares de praxe, ele permaneceu fora do alcance dos estudiosos durante mais de 40 anos. Eu mesmo procurei-o em vão até em antiquários de Lisboa. Só agora, portanto, pude lê-lo.
Ora, ao contrário das grandes obras literárias, que nem envelhecem nem morrem, os bons livros de história envelhecem, mas não morrem. No quase século e meio transcorrido desde a publicação do ensaio de Burckhardt sobre "A Civilização do Renascimento na Itália", o conhecimento do tema aumentou em proporção geométrica, mas ele continua a ser editado em várias línguas e a ser lido com prazer e proveito. À proporção que o tempo passa, um estudo como o do historiador suíço aproxima-se da grandeza da obra literária. É o que imodestamente tinha em vista Dumézil ao afirmar que, se um dia os especialistas alcançassem a conclusão de que suas análises da cultura indo-européia estavam equivocadas, seria apenas o caso de deslocar seus livros da estante de ciências humanas para a de literatura.
O que procuro dizer é que o longo prazo decorrido entre a redação da tese do professor Oliveira França e a sua publicação, embora tenha naturalmente afetado muitas de suas páginas, não comprometeu sua importância nem sua condição de obra a muitos títulos original e indispensável a quem quer que se aventure pela história luso-brasileira de Seiscentos. Ela comporta, aliás, pioneirismos inegáveis, sobretudo na tentativa de descrever o homem barroco português. Ao fazê-lo, Oliveira França transitava da história cultural para a história das mentalidades, transição que, na época, apenas se esboçava. A própria opção pelo tema da restauração portuguesa revelava uma disposição singular em meio à historiografia brasileira da época, toda voltada para os temas considerados, desde Capistrano, canonicamente nacionais, como se o Brasil tivesse realmente começado em 1500.
Oliveira França tem também o mérito de haver escrito sua tese, quando, em Portugal, onde via de regra o tema só servia para as declamações patrioteiras de 1º de Dezembro, só se dispunha do esclarecedor, mas breve, ensaio de Jaime Cortesão. Desde então e malgrado o aparecimento de estudos valiosos, como "1580 e Restauração", de Vitorino Magalhães-Godinho, e como as investigações relativas à história das idéias políticas do período, ainda não se conta com um estudo de conjunto que seja a contraparte, a oeste, do livro magistral que nos anos 60 J. H. Elliott dedicou à revolta dos catalães. É de esperar que Stuart B. Schwartz cumpra a promessa de escrevê-lo.
A organização de "Portugal na Época da Restauração" é transparente: a uma análise introdutória da cultura do século 17, seguem os estudos do que o autor designa por "o homem da restauração" e das condições materiais e dos ideais políticos do movimento. Quem é este "homem da restauração"? Ele é basicamente a versão lusitana do homem do barroco europeu e peninsular, donde a necessidade da parte introdutória que permitiu ao autor escapar à armadilha de categorias a-históricas, como a de caráter nacional ou de uma irredutível originalidade lusitana "vis-à-vis" da Espanha e da Europa. O português da restauração que o livro nos descreve não é o português em geral, mas o fidalgo; e isto não por opção elitista do historiador, mas em consequência da coincidência historiográfica de que a classe, cuja mentalidade a literatura e a documentação da época dos Filipes permitem aprofundar com exclusão das demais, foi também a grande promotora do movimento autonomista.
Este fidalgo português de Seiscentos é, em primeiro lugar, um indivíduo que foi ruralizado à força pela perda da independência em 1580, que aboliu o papel de corte de Lisboa, transferido para Madri, reduzindo a velha cidade de Ulisses a mera praça comercial. Madri não atraía, contudo, os novos vassalos dos Habsburgo, embora um punhado de membros da alta aristocracia aí se fixassem, inclusive no desempenho de cargos públicos. Ora, sem falar que, na época, a corte exercia o papel fundamental de domesticação da nobreza que constituiu até o século 18 o "sine qua non" da construção de estados monárquicos europeus, a fidalguia lusitana tornara-se há mais de século especialmente dependente dos favores régios sob a forma das oportunidades geradas pela expansão ultramarina.
É certo que havia as "cortes de aldeia", do título da obra coeva de Rodrigues Lobo, inclusive a própria corte do duque de Bragança em Vila Viçosa, a que o professor Oliveira França dedica todo um capítulo; e é certo também que houve as visitas reais de Felipe 2º e Felipe 3º (mas não de Felipe 4º) aos seus domínios lusitanos. Nem umas nem outras eram capazes, contudo, de dissipar a frustração aristocrática. A existência sonolenta nas quintas havia muito pouco a oferecer: o exercício venatório, a música sacra, a leitura de obras religiosas, de história, cavalaria e de poesia, sobretudo épica. Ruralizado, provincianizado, o fidalgo português tornar-se-á um anacronismo ambulante nas idéias e nas modas; e quando, a partir da restauração, afluir maciçamente a Lisboa à procura das benesses da nova dinastia, será o objeto preferencial do escárnio dos cosmopolitas como D. Francisco Manuel de Melo. (O tema do fidalgo ingênuo que sucumbe às tentações da corte ainda servirá a Camilo Castello Branco para escrever "A Queda de Um Anjo").
A inexistência de corte significará a redução drástica das oportunidades materiais ao alcance da nobreza. Arrancar favores em Madri era socialmente penoso e financeiramente oneroso, em vista da grande competição entre os súditos do rei católico oriundos da Espanha e dos domínios da Itália e de Flandres. A carreira das armas fora a vocação histórica da nobreza e a hegemonia castelhana na Europa abria às ambições um largo campo. Mas só poucos nobres portugueses se aproveitaram, inclusive por falta de recursos suficientes com que aviar-se para uma profissão dispendiosa, mal paga e assim mesmo com atraso; o próprio D. Duarte, irmão do duque de Bragança e futuro D. João 4º, desistiu do projeto de servir Felipe 4º, preferindo alistar-se sob a bandeira do seu primo austríaco, o imperador.
Havia o ultramar, cuja administração permanecera portuguesa, oferecendo as oportunidades de lucro lícito e ilícito do comando militar. Mas "os fumos da Índia" dissipavam-se sob o impacto da expansão colonial dos Países Baixos e da Inglaterra e, para o Brasil, apesar da guerra holandesa, seguiam sobretudo homens de extração subalterna, dispostos às tarefas pouco nobres de debelar índios, administrar negros, arrotear sesmarias, fundar canaviais e erguer engenhos de açúcar. As oligarquias ultramarinas tinham origem bem diversa e a atmosfera colonial era, por conseguinte, hostil ao nobre, salvo quando vinha na condição passageira de governador. Com razão, adverte Oliveira França: "Inda não se insistiu o bastante sobre o absenteísmo da fidalguia na colonização".

Outro ponto importante por ele destacado e confirmado por estudos mais recentes é o da porosidade das fronteiras entre a fidalguia e o povo, o que permitia grau razoável de mobilidade social. Contra Oliveira Viana, o autor compreendeu que a ilusão da presença de numerosa fidalguia no Brasil resulta da identificação entre fidalgo e homem bom e que a chamada "nobreza da terra" nada tinha a ver com a nobreza metropolitana, de espada ou toga. E, contudo, foi este nobre português, "herói frustrado", "artificial", "melancólico", que devolveu a seu país a independência alienada 60 anos antes.
Desta empresa ocupa-se a terceira parte da obra, a qual se inicia pela análise da ideologia da restauração, em que se confunde o profetismo, sobretudo na sua versão sebastianista e bandarrista, que a casa de Bragança tratou de instrumentalizar em causa própria, mediante inclusive a retórica de Antônio Vieira. A aclamação de D. João 4º propunha aos juristas do reino uma questão premente de legitimidade, que se resolveu mediante o recurso às concepções contratualistas da escolástica, que tiveram um renascimento vigoroso neste período. A partir deste ponto, o autor amplia o raio da análise para abarcar os movimentos populares que precederam a restauração: as conspirações sebastianistas, os protestos nacionalistas, as revoltas fiscalistas como o motim das Maçarocas no Porto e sobretudo as célebres alterações de Évora (1637), que se frustraram devido à falta de apoio da nobreza, ainda indecisa sobre como reagir à política de liquidação dos particularismos peninsulares levada a cabo pelo valido de Felipe 4º, o conde-duque de Olivares.
Daí que, a despeito do proselitismo dos jesuítas, as camadas subalternas tenham se mantido desconfiadamente à margem do 1º de Dezembro, golpe de Estado asséptico, sem participação popular, sequer a da grande burguesia de cristãos-novos, suspeitas de inclinações castelhanas devido a seu interesse nos circuitos da prata espanhola essencial ao comércio das especiarias. Beneficiada pela proteção dos reis castelhanos, ela olhou inicialmente com reserva a nova dinastia; e a conspiração pró-espanhola de 1641 contou com a colaboração de alguns dos seus membros eminentes. Atitude, porém, que veio a se modificar rapidamente, na medida em que o novo regime logrou obter a simpatia de comunidades sefarditas no exterior e a cooperação da praça de Lisboa, que terá um papel financeiro vital não só no apresto da armada do conde de Vila Pouca de Aguiar, que levantou em 1647 o bloqueio holandês do Recôncavo, mas sobretudo dois anos depois na criação e funcionamento da Companhia Geral de Comércio do Brasil.
Que a publicação de "Portugal na Época da Restauração" desperte o interesse da nova geração de historiadores que se prepara nas universidades para os temas da história portuguesa e hispânica. Tenho a impressão de que, neste particular, o Brasil sofre um déficit alarmante de conhecimento, com o resultado, entre outros, que o estudo da história européia se reduz a uma obrigação tristonhamente curricular, como se fosse tão estranha às nossas vicissitudes quanto a história da China. Para ficarmos no exemplo da restauração portuguesa, ela foi um episódio tão importante para nós quanto para Portugal, entre outras razões, e escuso-me de puxar a brasa para a própria sardinha, pelo fato de ter permitido a insurreição pernambucana contra o domínio holandês em 1645. Sem a independência do reino cinco anos antes, ela não teria sido possível ou não disporia de condições internacionais para vingar. Isto porque, como em 1648 a Espanha ver-se-á obrigada pelo tratado de Münster a ceder o Nordeste aos Países Baixos, a decorrente consolidação do Brasil holandês teria estilhaçado a América portuguesa, se para melhor ou para pior não vem agora ao caso. Por sua vez, a restauração portuguesa não se teria podido consolidar, se é que teria sido deflagrada, sem as condicionantes internacionais do período, a Guerra dos 30 Anos, a luta secular entre a Espanha e a França, o antagonismo entre os interesses britânicos e neerlandeses, para só mencionar as principais.
Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de "Rubro Veio" (Topbooks), entre outros.

Folha de São Paulo

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