quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

TEMPESTADES NO ALTIPLANO (DIÁRIO DE UM EMBAIXADOR)

Memorialismo diplomático
11/Jul/98
TEMPESTADES NO ALTIPLANO (DIÁRIO DE UM EMBAIXADOR) /LIVRO/; AFONSO ARINOS FILHO; ONDE ESTÁ O SECRETÁRIO-GERAL? /LIVRO/; JOÃO CLEMENTE BAENA SOARES


MARCO AURÉLIO GARCIA
Diários e memórias de diplomatas têm sido importantes referências para a historiografia política. Situados em postos privilegiados de observação, tendo acesso a documentos e informação reservada, possuindo o distanciamento e o tempo necessários, foram muitos os embaixadores capazes de produzir depoimentos fundamentais sobre conjunturas políticas relevantes dos países em que estiveram instalados ou para onde foram enviados em missão.
Quando se pensa nesse tipo de literatura no Brasil vem sempre à memória o extraordinário "Missão em Portugal", de Álvaro Lins (Civilização Brasileira, 1960).
Um dos mais importantes críticos literários brasileiros de seu tempo, Lins havia sido chefe da Casa Civil de Juscelino Kubitschek e um dos principais redatores dos discursos do Presidente. Enviado mais tarde como embaixador em Lisboa, posto tantas vezes atribuído aos amigos do rei, Álvaro Lins iria se defrontar com um difícil problema diplomático quando, no início de 1959, ofereceu asilo político ao general Humberto Delgado que disputara a Presidência de Portugal, como candidato de oposição ao ditador Antonio de Oliveira Salazar.
Tudo indica que Delgado venceu as eleições presidenciais, cujos resultados foram fraudados. O cerco fechou-se sobre o general oposicionista e este teve de refugiar-se na embaixada brasileira. Movido por fortes convicções democráticas, Lins enfrentou o servilismo da política externa brasileira à época em relação a Portugal e deu proteção a Delgado.
O memorialismo político-diplomático acaba de ser enriquecido com a publicação do diário de Afonso Arinos Filho sobre o período em que esteve à frente da embaixada brasileira em La Paz (Bolívia), entre março de 1980 e outubro de 1982, e do depoimento do ex-secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, o brasileiro Baena Soares, sobre suas missões em San Salvador, Nicarágua e Haiti, para resolver os graves contenciosos aí criados na segunda metade dos anos 80.
A passagem de João Clemente Baena Soares pela secretaria-geral da Organização dos Estados Americanos, nos anos 80, deu à OEA um fôlego e uma consistência que ela parecia ter perdido nos 60, quando se transformou em uma extensão da política de "guerra fria" que os EUA impuseram na América Latina.
A América Central nos 80 vivia uma situação de insurgência. Os sandinistas venceram na Nicarágua a guerra contra o regime de Somoza, mas o equilíbrio político que se seguiu no país foi extremamente precário, tendo em vista a ação dos "contras" apoiados política e militarmente pelo governo norte-americano. A guerrilha da Frente Farabundo Martí, de El Salvador, apesar dos êxitos obtidos, percebeu que seria extremamente difícil uma vitória militar, conclusão à qual foi chegando também parte importante das classes dominantes do país.
Uma difícil e complexa negociação de paz se estabeleceu, com a participação da ONU e da OEA. Em seu pequeno livro, Baena nos dá alguns fragmentos desse dramático período, narrando inclusive os episódios em que se viu, com seus assessores, envolvido pelo fogo de guerrilheiros e de forças governamentais num hotel no centro de San Salvador.
Da sua ação, neste período, como do trabalho realizado mais tarde na Guatemala e no Haiti, decorreu um considerável avanço democrático na América Central e no Caribe. É de se esperar que seu propósito de ser mais prolixo em outro depoimento possa materializar-se em breve.
Já o livro de Arinos reconstitui, mediante um relato dia-a-dia, o drama vivido pela Bolívia quando os militares em 1980 interromperam mais uma vez o processo democrático naquele país. O Presidente Lydia Gueiler fora destituída, o Congresso eleito dissolvido e, com esse ato, fecharam-se as possibilidades de que o legislativo elegesse o novo Presidente, posto para o qual nenhum candidato havia obtido maioria absoluta nas eleições gerais.
A subida violenta ao poder do general Garcia Meza, com notórias vinculações com o narcotráfico e com a ditadura argentina, mergulha o país num período de violência, instabilidade institucional e corrupção aguda. A crise econômica chega a limites inimagináveis. A violação dos direitos humanos, que provoca a tortura, morte, desaparecimento de opositores políticos, e a vinculação dos militares com o tráfico de drogas contribuem para o isolamento internacional da Bolívia.
Arinos reconstrói em detalhe o drama vivido pelo país: a violência contra as dissidências sindicais, intelectuais e militares, a corrupção desenfreada, a luta interna de camarilhas militares, as divisões e impasses das oposições, a sucessão vertiginosa de juntas e ditadores.
Seu relato, objetivo e documentado, não camufla a indignação diante da crise social e política que o país vive, nem esconde sua simpatia pelo povo boliviano, portador de tradições de luta pouco encontradiças na América Latina. O microcosmo boliviano permite observar o ressurgimento de um nacionalismo de direita que vai mais além das fronteiras do país e não hesita em estigmatizar ao mesmo tempo as duas grandes potências daquele período: a URSS e os EUA. Esse fenômeno, antecedendo a crise do mundo bipolar, revelava uma curiosa metamorfose da mentalidade militar na América Latina, que teve suas ramificações no Chile de Pinochet, na Argentina e no Brasil dos governos militares.
O embaixador em La Paz, que pouco pôde fazer para resolver a crise boliviana, revela um olhar severo em relação ao intervencionismo argentino. A embaixada brasileira, porém, mesmo que nosso país vivesse no ocaso do regime autoritário, sempre esteve aberta aos dissidentes que lá foram buscar asilo político. A atitude do embaixador em todos os episódios foi mais do que profissional.
Baena tinha mais instrumentos à sua disposição. Articulou ações com a ONU e com blocos de países, como o de Contadora, para levar adiante ambiciosos processos de pacificação que terminaram por ter êxito na América Central e no Haiti.
Os livros dos dois embaixadores permitem uma compreensão de um momento crucial da crise política de nosso continente. Ao mesmo tempo, são um testemunho da dignidade e profissionalismo de dois destacados diplomatas.

Marco Aurélio Garcia é professor do departamento de história da Unicamp.

Folha de São Paulo

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