sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

RUBRO VEIO: O IMAGINÁRIO DA RESTAURAÇÃO PERNAMBUCANA


O nativismo pernambucano
09/Mai/98
Guilherme Pereira Das Neves
Editoria: Caderno Especial

EVALDO CABRAL MELLO /HISTORIADOR/; RUBRO VEIO: O IMAGINÁRIO DA RESTAURAÇÃO PERNAMBUCANA

para aquilatar a importância deste livro, cujo título é tirado de um verso do hino de Pernambuco, vale assinalar que sua primeira edição data de 1986. Naquele ano, o célebre "Montaillou", de Le Roy Ladurie, circulava havia pouco mais de dez anos; "O Medo no Ocidente", de J. Delumeau, surgira em 1978; "O Queijo e os Vermes", de C. Ginzburg, em 1980; "O Retorno de Martin Guerre", de Natalie Davies, em 1983; "O Grande Massacre dos Gatos", de R. Darnton, e o primeiro volume de "Os Lugares da Memória", organizado por Pierre Nora, acabavam de vir à luz, em 1984.
Não se trata, com isso, de reivindicar a obra para o campo de uma história das mentalidades, cuja designação o autor julga "bem insuficiente para a ambição do seu escopo e para a variedade de seu método", como, aliás, evidenciam os títulos arrolados acima. Menos ainda de proceder a uma crítica maliciosa, sugerindo tratar-se de trabalho de inspiração estrangeira e desvinculado de nossa realidade. Mas, sim, de destacar a sintonia que há entre a sensibilidade de Cabral de Mello e certas correntes inovadoras da historiografia contemporânea, sensibilidade que ele viria a reafirmar com "O Nome e o Sangue" (1989) e "A Fronda dos Mazombos" (1995). Ou seja, chamar a atenção para a originalidade deste livro, cujo único parentesco próximo, em nosso meio, talvez se encontre em "Visão do Paraíso" (1958), de Sérgio Buarque de Holanda.
"Rubro Veio" procura delimitar, desde a expulsão dos holandeses em 1654 até o início do século atual, o lugar ocupado pela "restauração pernambucana no imaginário nativista". A cada um dos dez capítulos, o tema se enriquece, esclarecendo a especificidade das representações mentais que se desenvolveram na província em torno do período neerlandês. No percurso, nunca linear, mas sempre claro, esse nativismo, tão importante para explicar a posição singular ocupada por Pernambuco no império, é constantemente matizado.
Calçado no conhecimento assegurado em duas análises anteriores ("Olinda Restaurada", 1975, e "O Norte Agrário e o Império", 1984), o autor também não deixa de caracterizar a sociedade da açucarocracia. E, sobretudo, de analisar a historiografia, em particular a regional, sobre o "tempo dos flamengos", ao longo de mais de dois séculos. Na realidade, as grandes personagens deste livro são os próprios historiadores, desde os primeiros cronistas, como frei Manuel Calado, passando pelos autores do século 18 e inícios do 19, como Borges da Fonseca e Fernandes Gama, até os debates realizados na órbita do Instituto Arqueológico, criado em 1862, envolvendo Pereira da Costa, Raposo de Almeida, Alfredo de Carvalho e outros.
Para tanto, Cabral de Mello recorre, no primeiro capítulo, a um "inventário da memória", que inclui em seu âmbito a tradição oral e os monumentos, a toponímia e as festividades, a produção iconográfica e literária relacionadas ao período. O último, "Marginália: Os Alecrins no Canavial", serve como uma espécie de contraponto aos demais, sob a forma de uma análise socioeconômica do espaço pernambucano, permitindo ao leitor dimensionar a distância entre o discurso nativista e a realidade daquele momento, tal como hoje pode concebê-la o historiador.
No intervalo, o nativismo é explorado sob diversos ângulos. Em "A Cultura Histórica do Nativismo", verdadeiro "tour de force", ele procede a uma deslumbrante análise da recepção posterior, cambiante com a conjuntura, que vieram a encontrar as principais fontes de época, como o "Castrioto Lusitano". Central para a argumentação, "À Custa de Nosso Sangue, Vidas e Fazendas" busca, a partir de "pronunciamentos fragmentários e esporádicos" e da argumentação contrária, emitida pelas autoridades reinóis, recuperar "o discurso político do primeiro nativismo pernambucano", isto é, até 1817, tal como se articulou, na segunda metade do século 17, para elaborar as relações da açucarocracia com a Coroa portuguesa. Num procedimento que faz lembrar as análises de Pocock e Skinner, o assunto desdobra-se no seguinte, "A Metamorfose da Açucarocracia", acompanhando a formação da idéia de uma "nobreza da terra", decisiva para o imaginário da província, com o exame das expressões utilizadas para designá-la, do desenvolvimento da prática genealógica para identificá-la e, para justificá-la, da atribuição de um caráter aristocrático à colonização duartina do século 16.
"No Panteão Restaurador" move o foco cronológico para o século 18 e inícios do 19. Primeiro, revela o complexo jogo de interesses que motivou a fixação da tetrarquia de heróis constituída por Vieira, Vidal, Dias e Camarão, com a exclusão dos mestiços e o desdobramento da raça branca em dois representantes, em função da necessidade de contemplar tanto reinóis quanto mazombos, cuja oposição se acirrara com a Guerra dos Mascates (1710). Segundo, aponta o sutil deslocamento da concepção de uma "nobreza da terra" para a de uma pernambucanidade identificada aos feitos e glória militares.
Nos dois capítulos seguintes, Cabral de Mello volta-se, com uma aguda percepção, para o papel político da religião no Antigo Regime. Em "Olinda Conquistada", traça, com muitas nuanças, a trajetória do pensamento historiográfico sobre as causas da conquista holandesa, desde a ingênua visão providencialista de Calado até a concepção secular de Fernandes Gama. Em "A Terrena Obra e a Celeste Empresa", elabora o que se poderia denominar de uma economia do sagrado, verificando o lugar ocupado pelo sobrenatural nas façanhas da guerra e a fortuna incerta dos protetores celestes, como Santo Antônio.
Finalmente, nos capítulos 8 e 9, concentra o enfoque no século 19. De um lado, investiga os altos e baixos da "nostalgia nassoviana", nascida da insatisfação com a herança portuguesa. De outro, os riscos que tal atitude comportava para a integridade do império e a reação que provocou ("Olinda ou Olanda").
Ao trançar e retrançar a trama desses fios, a partir de um completo domínio das fontes e da bibliografia, Cabral de Mello consegue não só fornecer uma densa análise do imaginário pernambucano, calcado na restauração seiscentista, mas também destacar a especificidade de Pernambuco em relação ao conjunto do Brasil. "Rubro Veio" converte-se, assim, no plano mais imediato, em convite, ou repto, ainda não aceito, para que estudos semelhantes investiguem o imaginário que se teria constituído nas demais regiões. Nessa senda, muito do que se pensa, em geral, sobre o nativismo de fins do século 18 e inícios do 19, acriticamente herdado, em grande parte, da historiografia nacionalista oitocentista, exigiria, certamente, uma reformulação.
Além disso, "Rubro Veio" sugere também uma outra questão mais ampla. Em um de seus últimos textos, F. Furet salientou a possibilidade de que se valeu a Revolução Americana para incorporar o seu próprio passado em uma única história, ao passo que 1789 dividiu os franceses entre os simpatizantes da revolução e os do Antigo Regime. Nesse sentido, ao permitir a Pernambuco construir-se "na história", o imaginário da restauração distinguiu-o do restante do país, incapaz de se pensar historicamente, apesar dos esforços de Varnhagen. E, sob essa ótica, o virtual desaparecimento do nativismo pernambucano no início do século 20, detectado por Cabral de Mello, torna-se ainda mais intrigante. Será que a incorporação ao Brasil só pode fazer-se ao preço de uma abdicação da história? Será que o Brasil não precisa da história para constituir-se como nação?
Dedicada, como originalmente, ao grande mestre pernambucano José Antônio Gonsalves de Mello pelos seus "50 anos de labor historiográfico", esta oportuna reedição de "Rubro Veio" volta a tornar disponível uma das obras mais originais e instigantes da moderna historiografia brasileira, em cujo imaginário já ocupa o lugar de uma jóia, de raro e fino lavor.
Guilherme Pereira das Neves é professor do departamento de história da Universidade Federal Fluminense e autor de "E Receberá Mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o Clero Secular no Brasil, 1808-1828" (Arquivo Nacional).


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