sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

GUIA LITERÁRIO DA BÍBLIA


A retórica das escrituras
09/Mai/98
Moacyr Scliar
ROBERT ALTER/ORGANIZADOR/; FRANK KERMODE /ORGANIZADOR/; GUIA LITERÁRIO DA BÍBLIA

chegando a São Paulo, no começo de março, vi na livraria do aeroporto de Guarulhos dois livros sobre a Bíblia. Um deles, apregoado como best seller, chama-se "O Código da Bíblia". O autor, Michael Drosnin, afirma que, com o auxílio do computador, encontrou no texto bíblico mensagens cifradas -avisando da morte do primeiro-ministro Yitzhak Rabin. A Bíblia permite desvendar o futuro, afirma ele, com a férrea convicção que caracteriza os crentes de todos os tempos.
Este é um tipo de leitura que se pode fazer da Bíblia. Outro tipo de leitura é representada pelo livro que estava ao lado. Trata-se do "Guia Literário da Bíblia". Tive o prazer de conhecer um dos organizadores, Robert Alter, em Berkeley -participamos juntos de um seminário sobre literatura judaica contemporânea. Nele, a imagem do homem corresponde à imagem do intelectual: uma manhã encontrei-o entregue à prosaica ocupação de reproduzir textos em uma fotocopiadora. Nada mais longe da imagem de um intérprete original da Bíblia, e no entanto é exatamente isto que Alter é, bem como Frank Kermode, conhecido crítico (é de lamentar que nem a edição brasileira, nem a americana -esta da prestigiosa Harvard University Press- dêem mais informações sobre os autores; apenas as universidades em que lecionam são mencionadas).
E no entanto esse "Guia Literário da Bíblia" é, certamente, a mais importante obra que se escreveu sobre o tema. Como diz George Steiner, a influência da Bíblia faz-se sentir em escritores como Thomas Hardy, Thomas Mann, Gide, Proust, Hemingway, Faulkner, uma lista à qual deve ser acrescentado o nome de Kafka, cujas parábolas têm evidentemente inspiração bíblica. De onde brota esta influência é a pergunta a que os diversos autores -todos professores universitários- se propõem a responder.
Partem de um fato básico: "A Bíblia, considerada como um livro, atinge seus efeitos por meios que não são diferentes dos geralmente empregados pela linguagem escrita. Isto é verdade, quaisquer que sejam nossas razões para lhe atribuir valor -como o relato da ação de Deus na história, como o texto fundador de uma religião ou religiões, como um guia para a ética, como evidências sobre povos e sociedades no passado remoto, e assim por diante. De fato, a análise literária deve vir primeiro". Um objetivo que Umberto Eco caricaturou, quando escreveu o suposto parecer do leitor de uma editora acerca da Bíblia: "Há personagens demais", diz, entre outras coisas.
Não é tarefa fácil tal análise literária. Pouco sabemos sobre a forma como a Bíblia foi escrita. O próprio termo Bíblia (do grego "ta biblia", os livros) é controverso; faz supor, diz Alter, que os antigos escritores hebreus compuseram suas histórias, poemas, leis e listas genealógicas com a idéia de que estavam fornecendo o prelúdio a um outro conjunto de textos a ser escrito mais tarde em outra língua, o grego -ou seja, o Novo Testamento. A Bíblia hebraica é designada pelos judeus como "Tanach", um acrônimo para "Torah" (Pentateuco), "Neviim" (Profetas) e "Ketuvim" (coletânea de escritos ou: tudo o mais). Os textos eram, de tempos em tempos, revisados e emendados. Há pelo menos três estilos bíblicos, convencionalmente conhecidos como E (de "Elohim", um dos nomes da divindade), J (de "Javeh", outro nome da mesma divindade) e P (de "Priestly", sacerdotal), os dois primeiros datando do início da monarquia davídica, o terceiro posterior, cobrindo um período total de mil anos (o mesmo período, observa Alter, que vai da "Chanson de Rolland" a Robbe-Grillet).
A hipótese é periodicamente posta em dúvida, mesmo porque todos os originais desapareceram: os manuscritos sagrados mais antigos, do século 1º a. C., são os textos encontrados nas cavernas de Qumran. Também nada se sabe dos autores, o que levou Harold Bloom a especular que, em alguns casos, poderia até se tratar de uma autora -para ele, a narrativa é típica de uma "visão feminina". Contudo, e de novo usando Bloom -a "angústia da influência"-, há alusões internas, textos influenciando outros textos. Disto Alter dá um exemplo: as palavras que Booz diz a Rute ("Deixaste pai e mãe na terra natal para vires morar no meio de um povo que não conhecias") lembram a ordem de Deus a Abraão: "Sai de teu país, deixa teus parentes e a casa de teu pai e vem para o país que te mostrarei" e conferem a Rute o caráter de "mãe fundadora": tanto Abraão como Rute renunciam a seus laços naturais por outros, contratuais -o que é uma constante injunção na trajetória do chamado povo eleito. A redação do texto é uma pista fundamental para compreendê-lo; ou seja, o meio -a forma literária- é quase a mensagem.
Mas não é isso, claro, que faz da Bíblia literatura. Há uma inegável dimensão estética nos "Salmos", nos "Provérbios" e -naturalmente- no "Cântico dos Cânticos", dimensão esta contrabalançada, mas não anulada, pelas aborrecidas genealogias e pelos preceitos, dietéticos ou outros. Conclui Alter: "O impulso literário no Israel antigo era tão forte quanto o impulso religioso (...), de modo que, para entender o segundo, é preciso levar em conta o primeiro". Não estamos falando só de linguagem, mas também dos fascinantes personagens, muito mais complexos do que parecem. Esaú, por exemplo. Será ele, pergunta Alter, um bronco governado pelos roncos do próprio estômago? Assim o vemos no episódio do prato de lentilhas, mas, 20 anos depois, o que temos é um homem generoso para com seu irmão, que até o chama de "amo". Diferente dos personagens de novela de TV, Esaú evolui, muda. E, no caso, a mudança é importante. Os epônimos para Jacó e Esaú, Israel e Edom, sugerem uma oposição política: o povo eleito contra um de seus inimigos históricos, o mocinho contra o bandido. Mas o autor do texto consegue livrar as personagens da conotação maniqueísta, panfletária; faz "um tipo de literatura ideológica que incorpora um reflexo de autocrítica ideológica".
O "Guia Literário da Bíblia" compreende, além da introdução, três partes: "O Antigo Testamento", "O Novo Testamento" e "Ensaios Gerais". Cada parte destas, por sua vez, abrange vários ensaios. Assim, J. P.Fokkelman fala-nos do "Gênesis" e do "Êxodo", James Ackerman aborda "Números" e Herbert Marks fala dos "Profetas" -mas alguns destes merecem capítulos à parte.
É o caso da saborosa história de Jonas, que James Ackerman -para quem se trata de obra-prima da literatura- aproxima à sátira clássica. O nome do profeta já é significativo: "Ioná" em hebraico é pombo, uma ave assustadiça que se lamenta quando atormentada. E tormentos não faltam a Jonas. Pior, é uma constante aporrinhação resultante de insondáveis desígnios divinos. Deus manda que ele anuncie a destruição de Nínive; em vez de obedecer, o profeta foge (e a palavra hebraica que o designa é "yarad", descer), como se rumasse a um mundo inferior. Mas não adianta tomar o navio; Deus provoca uma tempestade que quase destrói o barco; os marinheiros lutam, Jonas dorme. Há um sorteio, ele é atirado pela amurada, um peixe o engole e o vomita no lugar que ele evitava, Nínive. Jonas então cumpre a ordem divina e anuncia a destruição da cidade. Os ninivitas instantaneamente se arrependem, Deus volta atrás -para grande aborrecimento de Jonas, que, pelo jeito, fez papel de bobo. À espera da destruição da cidade, Jonas vive em uma tenda no deserto, sob a sombra de uma planta -que, por ordem de Deus, é destruída por um verme.
Ackerman faz a análise literária da linguagem do texto, do caráter do personagem, das alusões. Mais que isso, vincula a história à sátira clássica, então em desenvolvimento em outras partes do mundo mediterrâneo. Finalmente, situa-a em seu contexto histórico. A comunidade de Judá passou por um período difícil ao regressar do exílio babilônico. As esperanças escatológicas formuladas em outras profecias, notadamente as de Isaías, não se realizaram. O resultado: frustração. A raiva que Jonas sente da suposta injustiça divina provavelmente era um sentimento disseminado à época. Jonas é, portanto, uma figura paradigmática, deste período e de outros semelhantes -daí a sua permanência.
No caso do Novo Testamento temos uma situação diferente -quatro textos que giram em torno do mesmo tema, a vida, paixão e morte de Jesus, mas escritos de forma diferentes. Por exemplo, "Marcos representa o ponto em que a tradição oral foi pela primeira vez desafiada pela escrita". Seu texto prima pela concisão, ao passo que Mateus e Lucas se expandem mais na narrativa. Os evangelhos guardam íntima relação com o Antigo Testamento -são numerosas as alusões a este-, comprovando o fato que as pesquisas históricas tornam cada vez mais evidente: os primeiros cristãos não se consideravam os fundadores de uma nova religião, mas sim os continuadores e reformadores do judaísmo. Nas palavras de Kermode, "o evento ou dito antecipado no texto antigo é cumprido no novo, e o novo é portanto validado por ele; mas também o contém e transcende". Também é importante assinalar que os evangelistas se viam como narradores de uma história realmente acontecida. Para os pesquisadores hoje empenhados na busca do "Jesus histórico" a interpretação dos evangelhos é crucial.
Como diz John Barton no "London Review of Books", Kermode e Alter conseguem com este livro dar novo rigor e seriedade ao movimento Bíblia Como Literatura. Trata-se de uma obra que prima pela abrangência; há inclusive um glossário de termos bíblicos e literários. Quanto à tradução brasileira, é correta e fluente, como pude constatar, comparando-a com o texto original (que é de 1987). Neste momento em que cresce no mundo a maré fundamentalista e em que textos religiosos são usados como norma de conduta política e forma de opressão contra outros é consolador saber que existem pessoas dedicadas a examinar um livro tão importante como a Bíblia sob o aspecto de mensagem literária. Que é talvez o aspecto mais transcendente de uma obra que há milênios condiciona os destinos de nosso mundo e mobiliza de maneira irresistível corações e mentes.
Moacyr Scliar é escritor, autor, entre outros de "A Majestade do Xingu" (Companhia das Letras).


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