quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

DIÁRIOS POLÍTICOS DE CAIO PRADO JÚNIOR - 1945

O ano de 1945
11/Jul/98
Paulo Sérgio Pinheiro

PAULO TEIXEIRA IUMATI
Era estranho chegar a São Paulo no ano de 1971 e dar-se conta de que Caio Prado Júnior estava preso pela ditadura num quartel militar. Amigos dedicados iam levar-lhe refeições e visitá-lo. Alguns anos depois, quando fui vê-lo em sua casa , que tinha um elefante de pedra no jardim, não ousei perguntar sobre a prisão. Estava interessado em cenas mais anteriores, nas articulações que precederam o putsch militar-comunista de 1935.
Depois da entrevista difícil, pedi para consultar seus arquivos. Muitas evasivas, mas, numa segunda visita, me orientou para pegar uma escada e examinar na parte superior das estantes de sua linda biblioteca alguns pacotes que guardara daqueles anos. Mas, à medida que eu anunciava o que estava em cada maço, sua angústia aumentava tanto que decidi descer da escada e dar por perdida qualquer possibilidade de ter acesso a seus arquivos.
Qual não foi o entusiasmo quando descobri os "Diários Políticos de Caio Prado Júnior: 1945", de Paulo Teixeira Iumati. O livro cobre apenas um ano dos nove volumes dos "Diários Políticos (1935-1947)", que, como Maria Odila Silva Dias lembra no belo prefácio, compreendem "as anotações de Caio Prado Júnior. Feitas ao sabor do momento, anotações em que este procedia a um cauteloso levantamento das massas presentes nos comícios e do surgimento de novas e múltiplas sensibilidades políticas na conjuntura de queda iminente do Estado Novo".
Esses diários são oportunidade deslumbrante, inesperada, de mergulhar num registro de bordo sobre a temática da organização popular e da mobilização política, temas aos quais Caio Prado Júnior somente vai retornar, pela última vez, em "A Revolução Brasileira", no ano de 1964. Neste livro está a única análise crítica, e brilhante, de um contemporâneo brasileiro sobre a Internacional Comunista, a central coordenadora dos partidos comunistas desde 1919, e sobre as concepções do marxismo soviético (muito antes do livro de Herbert Marcuse ) aplicadas mecanicamente depois de 1922, ano da fundação do PCB, ao Brasil. Os diários devassam o elo perdido entre a "Formação Política do Brasil e Outros Estudos" ( 1953) e a análise da conjuntura provocada pelo golpe de estado de 1964.
A primeira reação, entremeada de frustração, é perguntar por que o livro se detém apenas em um ano. Não é justo ( não sejamos ingratos!) reclamar por Paulo Iumati ter privilegiado o anos de 1945, quem sabe por já ter-se dedicado à biografia intelectual do autor nos "Diários em Caio Prado Júnior, Editor - A Intelectualidade Paulistana da Década de 1940" ( 1994). Há ainda irritantes questões, como a de saber se os trechos privilegiados são os mais relevantes para o entendimento, se não constroem um Caio Prado Júnior na medida certa da visão do organizador da seleta com comentários . E se essa intervenção aleatória perturba o que o magistral intelectual comunista registrara. Enfim, não se deve desprezar o inesperado presente que nos foi feito; melhor calar e ouvir Caio Prado Júnior, mesmo numa seleta comentada.
A conjuntura de 1945 é momento crucial da virada dos comunistas depois do Estado Novo, do fim da guerra mundial e na antevéspera da guerra fria. As oposições democráticas e Luís Carlos Prestes, o líder do Partido Comunista do Brasil, PCB, hesitavam em fortalecer uma frente das esquerdas. Logo os comunistas "à la manière" do comunismo soviético, na leitura tardia das táticas que levarão à aliança entre os comunistas e o ocidente para desbaratar o nazismo, apóiam Getúlio Vargas, o ditador da véspera, e logo a União Democrática Nacional, UDN, a oposição, tomará uma direção própria.
O que se fez em 1945 marcará o resto do século no Brasil: as elites, os herdeiros da ditadura, as forças da oposição, os comunistas, o movimento operário, os intelectuais (que ali como grupo tiveram o seu grande momento de organização para contestar) -ninguém passará incólume. Será impossível repassar aqui todas as tensões do período (melhor lerem o livro) e aponto apenas algumas.
Caio Prado Júnior observa, participa dos acontecimentos e, inabalável, vê o processo com a precisão de quem disseca a história do presente: "A desorientação política é geral. As oposições não se decidem a organizar o movimento pró-democratização. A razão oculta é que confiam mais num golpe (17 de março)". Por um instante, logo depois, entusiasma-se após um encontro com Prestes no dia 23, das 10 às 13 horas.
Imagine-se uma conversa entre os dois por três horas. Severo Gomes, numa festa de aniversário do antigo Cavaleiro da Esperança na casa de Aldo Lins e Silva, em São Paulo, sussurrava : "Prestes tem a polidez de um autêntico general da Primeira República". Dada a secura do historiador e o formalismo do general da Coluna, o encontro deve ter sido um silêncio entremeado de pausas com palavras: "Embarquei para o Rio, a fim de avistar-me com Prestes. A sua idéia de 'apoio ao governo' estava sendo explorada pela ditadura (...). Aceitou entendimentos com os políticos liberais e já promovi conferência sua com Virgílio Melo Franco" (irmão de Afonso Arinos de Melo Franco e um dos fundadores da UDN, que morreria logo depois).
Não tardaria e o entusiasmo se transformaria em sensação amarga . A entrada nos "Diários", em 20 de abril, disfarça a contrariedade com um tom impessoal: "Em toda a oposição, que forma a maioria da opinião consciente do país, a decepção foi total (...). Os comunistas se dividiram. A maior parte, mesmo quando oposicionista, engole em seco, procura justificar Prestes. Mas está descontente, e sua ação se ressente disto. A atividade declinou nitidamente".
A partir de agosto, Caio Prado, desanimado diante do apoio dos comunistas ao 'queremismo', à candidatura do ditador à Presidência , assume um tom pessoal mais categórico. Paulo Iumati chama sentimento de impotência -"Mas nada há a fazer. O hermetismo do partido é total" (14 de agosto)- e de desconfiança - "Tenho a impressão que Prestes planeja um grande golpe. É pelo menos a única forma com que posso interpretar suas atitudes" (favoráveis à permanência no poder de Getúlio, mas Caio Prado ainda acredita na "sinceridade" do general da Coluna).
Nesse 28 de agosto está uma das mais alentadas análises já feitas das contradições que a posição de Prestes suscitava, em que não falta o exame das consequências desastrosas na postura dos conservadores (que "se alarmariam tremendamente") e do Exército ("que jogaria toda sua força na balança"). Caio Prado é preciso na análise da conjuntura e na construção dos cenários futuros, acertando sempre. O ano terminará com o golpe militar que alija o ditador : "Na noite de hontem (sic: esta grafia me deixa dúvidas sobre os critérios da transcrição dos originais) para hoje caiu afinal a ditadura", registra no dia 30 de outubro. Caio Prado, apesar de todas as frustrações, candidata-se a deputado federal, ficando como terceiro suplente.
A extraordinária revelação dos "Diários" deixa a convicção de que estamos diante do mais relevante documento, ainda inédito, sobre as décadas de 1930 e 1940. Quando forem publicados na sua integridade, numa edição com aparato crítico, como ardentemente se espera, será saldado, em parte, o constrangido débito da intelectualidade brasileira com a dignidade e o rigor de Caio Prado Júnior. Afinal haverá um memorial à altura do homem da casa do elefante.

Paulo Sérgio Pinheiro é professor de ciência política na USP e autor de "Estratégias da Ilusão - A Revolução Mundial e o Brasil (1922-1935)" (Companhia das Letras).

Folha de São Paulo

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