sábado, 8 de novembro de 2008

PRIMEIRO ATO, CADERNOS, DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS

O padre e o anarquista
08/Ago/98
José Antonio Pasta Jr.

PRIMEIRO ATO, CADERNOS, DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS; JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA; GUERRA SEM BATALHA - UMA VIDA ENTRE DUAS DITADURAS ; HEINER MÜLLER
Heiner Müller, quando veio ao Brasil, no final da década de 80, tinha um encontro marcado com o Teatro Oficina, isto é, com José Celso Martinez Corrêa. Se bem me lembro, por algum motivo acabou não comparecendo, indo jantar em outra parte. De certo modo, esse encontro se dá agora nas livrarias, com o lançamento simultâneo de dois livros-documento que expõem a trajetória de cada um deles. São, ambos, documentos de primeira ordem e, na mão de gente disposta, podem ajudar na alteração das perspectivas vigentes. A sua conjunção também é propícia, porque cria possibilidades de comparação em um terreno no qual são escassas. E, no caso, comparar pode ajudar a evitar mitificações e juízos rasos, estes, sim, abundantes.
Todavia, compará-los a seco, apesar de instrutivo, seria covardia, como se vê logo à primeira leitura. De saída, por conta do diferente grau de unidade dos materiais. Embora ambos os livros sejam documentais e tenham feição biográfica, o extenso depoimento de Müller, feito no auge de sua maturidade e refletindo já as últimas reviravoltas do destino alemão, tem uma dimensão propriamente autoral que não caberia pedir ao livro de Zé Celso, que reúne documentos, entrevistas e depoimentos de épocas diversas, inclusive recentes, mas enfocando apenas o período de 1958 a 1974. Muitas das mais célebres e momentosas manifestações de Zé Celso encontram-se reunidas aí. Mas a real desproporção entre os livros é menos fortuita e, mais uma vez, pouco lisonjeira para o sentimento-de-si nacional, porque diz respeito ao grau de densidade reflexiva e à dimensão de consequência presentes nos materiais.
Por mais irônicas e desencantadas que sejam as reflexões de Müller, nelas se ouvem ecoar, é verdade que em nota discreta e geralmente negativa, a "Dramaturgia de Hamburgo", de Lessing, a goethiana "Missão Teatral de Wilhelm Meister", as reflexões teatrais de Schiller e Hegel (notadamente no que se refere a Shakespeare), Benjamin, mais algo do viés ultranegativo dos frankfurtianos do pós-guerra e, bem ali ao pé do autor, a presença impressionante do legado de Brecht, que, de certo modo, já reúne em si os anteriores e os leva ao limite. No livro de Zé Celso, essa espécie de terceira dimensão da reflexividade -sua profundidade cultural- praticamente inexiste como tal, e essa ausência poderia ser bem representada por uma perdida referência -aliás equivocada- ao padre Anchieta. Não que o livro do brasileiro não esteja cheio de referências, mas, submetidas a uma espécie de descarte contínuo, elas não formam nenhuma figura, numa deriva que parece não remeter a nada além de si mesma.
Note-se que essa desproporção incide menos, em primeira instância, sobre o homem de teatro Zé Celso do que sobre algo que, em comparação, não se pode deixar de sentir como uma deficiência da cultura nacional, que o inclui e ultrapassa. Sensível em todas as áreas, artísticas ou não, esse déficit é particularmente agudo no teatro, e jamais deixei de achar tão impagável quanto significativo que uma de nossas melhores e mais conhecidas histórias do teatro -o "Panorama do Teatro Brasileiro", de Sábato Magaldi- incluísse um capítulo intitulado "Vazio de Dois Séculos".
Numa conta em que os séculos mal chegam a cinco, é um vazio bem grande, e logo se vê que, para se avaliar o teatro brasileiro, ainda mais do que a literatura, é preciso lançar mão daquele "socorro do relativismo histórico", de que já falava Lúcia Miguel Pereira a respeito de nossa precária formação, advertindo que não se lerá "A Moreninha" pelo mesmo diapasão de "Guerra e Paz". Nesse caso, o massacre seria inevitável, mas, pior que ele, talvez fosse a completa perda de perspectiva.
Por isso mesmo, essa desproporção que o contraste dos livros traz à tona indica a necessidade, tão aparentemente óbvia quanto desatendida, de se perspectivar o trabalho de Zé Celso, de projetá-lo no conjunto de uma cultura com cujas deficiências, vazios e desequilíbrios ele interage intensamente, independente do grau de consciência. Talvez assim se pudesse compreendê-lo e criticá-lo, finalmente, não adorá-lo nem, muito menos, execrá-lo.
Este livro mesmo, todo feito de golpes e contragolpes, mostra que o caráter acintosa e incessantemente provocador de sua atitude não cessa de gerar respostas igualmente imediatas e polêmicas, quando não truculentas -sempre em prejuízo da perspectivação. Zé Celso parece urgido por uma permanente luta de morte, que só conhece extremos. O mais interessante é verificar que essa perspectivação parece não interessar ao próprio Zé Celso, que foge dela como o diabo da cruz. Que o diga sua irritação com Décio de Almeida Prado, que tratava de fazê-la. Dificultá-la é parte essencial -não sei se consciente- de sua estratégia: o caráter sempre absoluto -e finalmente messiânico-, invariável nos seus textos, opera sempre em terra arrasada, numa espécie de "tabula rasa" incessante.
Esse mecanismo instala Zé Celso numa boca de cena perpétua, sem fundo, em que ele aparece, queira-se ou não, como a síntese encarnada dos tempos, quase uma aparição, que ofusca e sidera. Parte de seu encanto (real) vem daí, mas que isso não sirva para isolá-lo ou indigitá-lo: esta pulsão de encantamento, que nele parece responder a uma necessidade veemente, é tão nacional quanto nacionalmente desconhecida. Está em toda parte, e talvez seja a estranha familiar mais desconhecidamente ilustre da cultura brasileira. Que ela apareça de maneira tão gritantemente teatral, quase obscena, em Zé Celso, é um sintoma cultural de primeira ordem e, afinal, menos maligno que seu oposto simétrico -a majestosa e augusta encenação da própria intangibilidade que, como se sabe, gera uma infinita demanda de reconhecimento, à qual é inerente a procura do bode expiatório, que açula a ralé.
Ainda aqui, a comparação com o depoimento de Müller pode ser instrutiva, pois, com todas as diferenças, ambos se desenham sobre um fundo comum de aguda descontinuidade cultural: Müller sobre a ancestral e renovada "miséria alemã", marcada neste século por duas guerras mundiais, duas ditaduras e uma reunificação tendencialmente regressiva; o nosso Zé Celso, sobre o fundo da tradicional fratura e inorganicidade de nossa cultura, repostas neste século pelas modernizações conservadoras, induzidas por duas ditaduras e pela atual decomposição ultramercantilista do precário tecido sociocultural. Ambos os autores não cessam de enfatizá-lo. Mais que curioso, é talvez decisivo ver como reagem: Zé Celso, que percebe com agudeza o caráter fraturado e letárgico, "voduzado', "fajuto", "encantado" da cultura brasileira, põe-se declaradamente numa atitude, digamos, de permanente parturição cultural -é preciso sacudir esse corpo letárgico, chocá-lo, finalmente exorcizá-lo, para que revenha de sua possessão maligna e aceda finalmente a si mesmo. Quer, assim, de algum modo, edificar uma cultura, mas o faz sem reatar com coisa alguma mais que por um breve instante, e sem reatar nem sequer consigo mesmo, numa descontinuidade formidável, em que nenhuma real dimensão de projeto se articula.
Contra a descontinuidade, reage com o hiperdescontínuo e quer edificar pela destruição permanente, o que o instala em uma espécie de presente perpétuo (de que é signo a adolescência interminável), que retira da história e o vota, desde sempre, ao mito e ao rito. É de natureza mágico-religiosa o dispositivo de Zé Celso -"a bruxaria que é o teatro", "transação sagrada", "teatro de religação", "o sagrado brasileiro", "homens eletrificados pela Terceira Pessoa do Santíssimo Mistério da Divina Eletricidade" etc. Entre o demiurgo, o sacerdote e o sacrificado, Zé Celso combate o vodu pela bruxaria.
Este livro mostra que foi dos poucos artistas, entre nós, a perceber a real expansão do fetichismo da mídia nas últimas décadas, à qual no entanto, opõe um teatro... de feitiçaria. É possível que o sacerdote José Celso, com brilho inegável, celebre o que o destrói. Não é à toa que, nos últimos tempos, se tenha visto como inimigo jurado da Igreja: é concorrência. Seus modelos mais profundos são a Igreja e o padre. No livro, conta-se que sua família o queria padre. Ao seu modo, cumpriu o desígnio -e deu uma espécie de padre da destruição. Não é, por isso, pior do que os outros.
Já Heiner Müller não proclama qualquer projeto construtivo. Ao contrário, aceita tranquilamente que, a certa altura, o chamem de anarquista. Nenhum valor sólido, nenhuma ilusão, pessimismo negro em toda a linha, o que faz, de imediato, pensar no cenário dito pós-moderno. Mas, se olharmos bem, encontraremos meio escondido um bom e velho alemão da "Bildung", obcecado pela construção da cultura nacional.
A referência a Brecht -que em Zé Celso é uma das muitas momentaneamente instrumentalizadas para descarte rápido (com a caução costumeira da leitura tropicalista da antropofagia oswaldiana)-, onipresente nele, permite observá-lo. Escolheu morar em Berlim Oriental "porque Brecht estava lá" e, de certo modo, concebe toda sua obra como uma tentativa de "responder" a esse antecessor. Por não ser brechtiano escolástico, soube perceber o caráter "subversivo" de Brecht -e, note-se, subversivo pelo seu marxismo e pela sua "excelência". Pelo testemunho de Müller, que não foi um "familiar" de Brecht, aproximar-se efetivamente dele não era aceder ao mandato social, como se quer agora, mas participar de seu isolamento compulsório e orquestrado. Todavia, onde talvez se dê a ver mais nitidamente sua obsessão pela "Bildung" é na capacidade de perceber a maquinação surda e precisa do regime para "evitar sucessores para Brecht", "a luta contra Brecht e suas consequências".
Não é ver pouco, quando se pensa que, entre nós, com muito menos repressão policial, processos semelhantes estão em pleno curso nos meios culturais e institucionais, sem que pareçam dar-se conta os principais interessados. Mas, talvez, estejamos de novo diante das vicissitudes das diferenças de densidade entre as culturas, aquelas mesmas que as fazem opor, sobre um fundo parecido, um padre anarquista a um anarquista construtivo.
José Antonio Pasta Jr. é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Trabalho de Brecht" (Ática).

Folha de São Paulo

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