segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A ESQUERDA POSITIVA - AS DUAS ALMAS DO PARTIDO COMUNISTA - 1920/1964

GILDO MARÇAL BRANDÃO
Dilemas do Partidão
11/Jul/98
Brasilio Sallum Jr.


Gildo Marçal Brandão inicia a apresentação do seu livro com uma frase, cujo enunciado só pode ser aceito com uma pitada de sal: "Na medida em que a esquerda comunista é história e não presente, tornou-se possível analisá-la 'sine ira et studio'".
Embora o texto tenha sido escrito sem ódio nem preconceito, não se encontrará nele análise fria e desapaixonada. O livro transpira paixão da primeira à última página. É com alma de "partisan" de certo realismo político, de vertente hegeliano-marxista, que o autor examina a esquerda comunista brasileira no período 1920 a 1964. Isso, por si só, já faz do livro uma exceção na produção contemporânea de ciência política, cada vez mais pautada por pretensões "científicas" que isolam a atividade política de suas conexões com as bases materiais da sociedade e a esvaziam de conteúdos conflitivos. Além disso, parte das questões políticas que focaliza ao estudar o velho Partidão são traduzíveis para o presente e constituem objeto de debate intenso na esquerda atual.
O aspecto polêmico do livro aparece nas três hipóteses que formula. A primeira é que, do mesmo modo que o capitalismo, a classe operária é de formação hipertardia, só tendo gerado formas de autoconsciência na medida em que o capitalismo "verdadeiro", isto é, industrial, se foi implantando entre nós.
Esta afirmação contraria a maior parte da literatura sobre as formas de organização da classe operária, cujo ápice estaria na Primeira República e cuja trajetória de decadência se daria a partir dos anos 30. Para Gildo Brandão, ao contrário, só nos anos 50 -quando o capitalismo industrial no Brasil começa a se integrar nacionalmente- seria pertinente o debate sobre estar ou não o operariado se constituindo como classe politicamente autônoma. Mesmo que os agentes só pela consciência possam transformar-se em sujeitos históricos, trata-se sempre de consciência da objetividade, não cabendo falar em autonomia política da classe operária em épocas em que ela mesma nem sequer fora produzida pelo capital.
Seguindo esta orientação, Brandão avalia cuidadosa, mas severamente, a literatura acadêmica que faz apologia do sindicalismo das minorias militantes, de orientação anarquista, que dominava o movimento operário antes de 1930. Não há "que confundir combatividade, resistência e grandeza moral com significação histórico-universal; nem as lutas cotidianas e a natural resistência da classe operária à escravização que o sistema de salariado e a existência do Estado implicam, com a constituição de sujeito político".
Mais: a estrutura sindical montada pelo movimento anarquista seria mais produto que premissa das agitações políticas da época, e as grandes greves de 1917 e 1919 seriam antes manifestações de desespero e isolamento que de maturidade e capacidade de articulação e defesa dos interesses da classe operária. E, para completar, no pós-30, longe de decaírem politicamente, "pela primeira vez os trabalhadores aparecem como classe nacionalmente configurada, ainda que reconhecida e posta como tal pelo alto". O que teria as implicações já apontadas décadas atrás por Weffort: o sistema político dominante não poderá se desenvolver sem alguma forma de consentimento ativo dos "de baixo".
A segunda hipótese é a de que o terreno privilegiado para a construção da identidade operária é o partido político, a relação com o Estado e a política institucionalmente considerada.
Com isso, Gildo Brandão opõe-se à literatura que tende a reconhecer a classe operária só na vida sindical, nos movimentos de resistência à hierarquia e à disciplina fabris, nas greves etc., literatura que tenta isolar o campo da autoconstituição do sujeito do campo do poder, que concebe o Estado de forma negativa, como se fosse possível isolar o instituinte do instituído, o movimento operário do movimento geral da sociedade e fazer a história auto-referida do proletariado. Para ele, ao contrário, o sujeito "classe operária" não se constituiria anteriormente à sua participação nas instituições: a forma do processo político vigente condicionaria os próprios modos de ser da classe e da luta de classes...
Nesse passo, o autor desenvolve discussão brilhante sobre o significado da ilegalidade do PC durante a República Liberal (1946-64). Na medida em que o processo político mais inclusivo condiciona o modo de ser operário e passa a se introjetar no seu interior, a ilegalidade do PC é "variável forte para explicar a subalternidade operária durante a República liberal". A fraqueza política e ideológica do proletariado brasileiro não resultaria apenas do caráter retardatário da industrialização e da heterogeneidade estrutural da classe operária ou da orientação política desastrada de seus dirigentes.
O veto à participação política legal das classes subalternas por representação própria -proibição inerente ao sistema político- teria funcionado como impedimento estratégico à formação de uma classe operária autônoma, tornando difícil e lenta a formação de sua consciência política.
O autor sugere também que a exclusão política do PC condicionou, junto com a hipertrofia do Executivo, a evolução política dos partidos no período. A ausência de um enfrentamento sistemático com uma organização política vinculada às classes subalternas teria dado uma sobrevida aos partidos de notáveis, insulados na vida parlamentar. Restringindo a competição, a marginalização do PC teria contribuído, enfim, para bloquear a diferenciação e consolidação do sistema político-partidário. De forma mais geral, a ilegalidade do PC é tomada como indício do caráter limitado da democracia de 1946.
As duas hipóteses têm consequências fortes sobre a avaliação da ação e ideologia do PC: de início, não havia suporte material para a autonomia do partido e, quando ele apareceu, a ilegalidade restringiu sua arena de luta possível. É nesse passo que Gildo avança uma terceira hipótese, relativa ao conteúdo ideológico e à orientação política do Partidão: "A especificidade do comportamento ideológico e da ação do PC foi sua incapacidade (ou impossibilidade) de optar definitivamente entre uma via revolucionária e uma via reformista (...), tendo em consequência atraído segmentos distintos da população com motivações diversas". Desta forma, "a contradição entre civilistas e militaristas, (que) permeia toda a história do PC e da esquerda política brasileira (.. .), não se reduz à origem militar ou civil de seus dirigentes. Ao contrário, tem a ver com a concepção de fazer política: politicista ou insurrecional".
Chegamos aqui à idéia de que o PC era portador de duas almas, a de esquerda negativa, insurrecional e golpista, que concebe a revolução como explosão, e a de esquerda positiva, atenta à lógica inerente à vida política, que reconhece que o "objetivo final" só pode ser alcançado por meio de objetivos intermediários e soluções "viáveis", que concebe a revolução como processo.
Segundo Brandão, as duas almas sempre conviveram conflitivamente no PC: a alma de esquerda positiva teria dominado apenas por curtos períodos, nos ascensos de massa de 1942-47 e 1958-64; e teria sido subjugada pelo vanguardismo, pelo golpismo e pelo aventureirismo. Exatamente o inverso, sublinhe-se, da imagem acomodada, conciliadora etc. que se tem feito do Partidão nos últimos decênios.
Mas, como os qualificativos empregados indicam, o juízo histórico do autor sobre a atuação do PC é bastante duro. Ela teria sido determinada "por uma leitura catastrofista da realidade, vale dizer, do capitalismo e da democracia" e pela idéia da iminência do socialismo que estaria embutido em todas as lutas econômico-sociais. Ou, ao inverso, o modo dominante do PC fazer política desconheceria as condições objetivas do país, a especificidade do capitalismo no Brasil, desprezaria as instituições em geral e as brasileiras em particular, a busca de objetivos intermediários e, sobretudo, a elaboração de soluções positivas para os problemas nacionais.
Um juízo como este não diz respeito apenas ao PC. Ele respinga sobre as concepções vanguardistas que levaram a esquerda para a luta armada nos anos 1960 e 70. E a discussão a respeito da conduta oscilante do PC fornece instrumentos para avaliar os dilemas e a ação da esquerda nos dias de hoje. Já não há mais a ganga da ilegalidade pesando sobre ela. E a alternativa de instaurar de imediato uma nova sociedade, socialista, se converteu em utopia. Mas não há como negar que, com outras vestes, o dilema de ser negativa ou positiva permanece no cerne da esquerda.
O livro de Gildo Marçal Brandão poderá, é claro, sofrer restrições -não me parecem plenamente satisfatórias as explicações que dá para o domínio do vanguardismo do PC ou mesmo para a relação entre objetividade e subjetividade no processo histórico. Mas, sem dúvida, constitui obra de qualidade superior e leitura indispensável, seja para a compreensão realista da atuação do PC no Brasil, como guia para os estudos sobre o movimento operário, contribuição à história da formação do país e, mais que tudo, talvez, como instrumento para a análise do presente.

Brasilio Sallum Jr. é professor do departamento de sociologia da USP.


Folha de São Paulo

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