quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Uma nova sociedade do trabalho

12/Dez/98
Emir Sader
Sociologia; História, Geografia.....

Há quase 20 anos foi anunciada a "crise da categoria trabalho", isto é, a perda de sua centralidade como ponto articulador das contradições sociais e como critério de identidade social das camadas sociais anticapitalistas. Às contradições de classe se somariam contradições de gênero, de raça, entre outras. Desde então, o movimento operário não cessou de se debilitar como expressão organizativa e social dos trabalhadores, seja devido à incapacidade de sindicalização e negociação, seja, principalmente, às suas deficiências para integrar os desempregados em suas estruturas e lutas.Depois de décadas de pleno emprego e de Estado de Bem-estar Social, a Europa ocidental passou por transformações profundas em suas relações sociais. Um saldo disso é a atual necessidade de conviver com cerca de 30 milhões de desempregados. Não há surpresa, portanto, na publicação de mais um livro tendo como subtítulo "O Movimento Operário Europeu em Crise". A novidade está na pretensão de um professor de filosofia francês, colaborador do "Le Monde Diplomatique", de analisar o tema e encerrar o livro com uma conclusão sobre a "atualidade do projeto comunista". "Maximalismo francês" -dirão alguns, do alto de sua sapiência acadêmica. "Utopia e 'bavardage'" -reagirão outros, em suas bem consolidadas barricadas do realismo mercantil.É contra esse clima que Bihr se insurge, falando logo de cara do "desinteresse educado, quando não uma hostilidade declarada" com que as questões do mundo do trabalho passaram a ser abordadas. É verdade que, nos congressos de ciências sociais, os temas ligados ao trabalho continuam tendo a maior participação, demonstrando que nem tudo tende a ser soterrado pelos modismos da mídia. Entretanto, mesmo aí, tenta-se passar a idéia de que tudo o que fala desse mundo pertence antes à arqueologia do que à compreensão das sociedades capitalistas realmente existentes em que vivemos.Para Bihr, esse ambiente insere-se na "contra-revolução contida no bojo dos projetos neoliberais", que requerem a quebra da resistência de toda forma organizada de ação, mais particularmente do movimento operário, pelo lugar que o trabalho ocupa no processo de acumulação de capital, além de seu papel histórico de referência central na resistência à superexploração. Como resultado disso, no "plano estratégico, o movimento operário ocidental encontra-se, hoje, nu", diz Bihr. Tanto as estratégias revolucionárias clássicas, quanto as reformistas teriam se esgotado, esvaziando as apostas de longo prazo e condenando o movimento operário à defensiva, quando não à passividade e à impotência.O livro de Bihr dedica-se, em sua primeira parte, a analisar esses modelos e propor razões para sua perda de atualidade. Na segunda, volta-se para os desafios que resultam da ruptura do compromisso fordista que fundou e solidificou o período histórico anterior. Destaca como heranças a fragmentação do proletariado, a internacionalização do capital, a crise ecológica, a crise de sociabilidade e uma espécie de crise cultural.A partir daí, Bihr lança-se a um propósito mais ambicioso -a sugestão do que ele denomina "vias de renovação" para o movimento operário europeu, mas que, como referência histórica, política e ideológica, serviria também como proposta para países como o Brasil. A plataforma é conhecida: trabalho para todos, trabalhar menos, trabalhar de outra maneira; desenvolver uma sociabilidade alternativa. Trata-se, em última instância, de implementar as bases para um novo tipo de sociedade do trabalho.Mas qual seria a estratégia apta, num contexto tão desfavorável, para pôr em prática esse projeto? Aqui tampouco Bihr inova, opta pelo caminho dos contrapoderes. Antes disso, como já é de praxe, descarta a estratégia da "grande noite", isto é, a visão insurrecional, revestida de um certo espírito redentor que, segundo ele, deriva da idéia judaico-cristã do fim do mundo, do milenarismo das grandes revoltas camponesas da Idade Média, bem como da influência e do fascínio das revoluções democrático-burguesas, em particular, da francesa. Bihr propõe o caminho gramsciano da construção de formas alternativas de poder, de sua socialização gradual, "desenvolvendo o 'espaço' da sociedade civil com seus momentos de auto-instituição da vida social: contratualização de relações sociais, discussão pública, democracia política". A estratégia dos contrapoderes tem em vista a "reapropriação das condições materiais, institucionais e culturais da existência individual e coletiva". Sua prática é a da extensão permanente dos distintos processos de socialização. Um poder, por sua própria natureza, ambivalente, pois seria ao mesmo tempo, por um lado, alternativo e antagônico, por outro, complementar.A retomada das raízes libertárias do marxismo aponta em direções conhecidas: o federalismo, a renovação do sindicalismo revolucionário, a autonomia dos movimentos sociais específicos e a assunção de direções políticas que não fossem "Estados maiores". Os riscos de uma versão renovada da social-democracia não são ignorados por Bihr que acredita, entretanto, no potencial anticapitalista de um movimento operário liberto das travas institucionais e economicistas tradicionais.Trata-se de um caminho para que a emancipação de todos seja condição da emancipação de cada um? Seria um itinerário para a reapropriação pelos homens do seu próprio destino? Se o norte apontado por Bihr se orienta por uma variante libertária, resta ainda uma tarefa crucial, a análise das condições sociais realmente existentes no capitalismo contemporâneo, ponto imprescindível para que uma definição mais precisa das forças sociais anticapitalistas possa iluminar verdadeiramente o potencial de uma renovação da luta emancipatória dos homens em tempos de fetichismo financeiro globalizado.

Emir Sader é professor de sociologia na USP e autor, entre outros livros, de "O Poder, Cadê o Poder?" (Boitempo).

Folha de São Paulo

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