segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Resíduos do tempo

10/Out/98
Cilaine Alves
JORNAL DE RESENHAS
RÉPLICA


Mesmo hoje, a desorganização do mercado editorial brasileiro impõe a muitos autores formas alternativas de difusão de textos. Um bom exemplo é o livro recém-publicado de Modesto Carone, "Resumo de Ana", cuja primeira parte saiu em 1989 na revista "Novos Estudos Cebrap".
No século passado, a prática de repassá-los de mão em mão ou de reproduzi-los em periódicos era, obviamente, ainda mais corriqueira. Dada a precariedade do sistema editorial, o estudioso do século 19 sempre leva em conta as revistas e os jornais, na época os principais órgãos de divulgação da produção literária e do debate intelectual. Paira ainda sobre o período a forte suspeita de que a recente história das edições brasileiras arrefeceu, mas não sepultou completamente antigas práticas de difusão, a oral e a manual entre elas, como evidencia a consagração em vida de Laurindo Rabelo, cuja obra é toda póstuma.
Na resenha em que discute o livro de minha autoria (Jornal de Resenhas, nº 42), Carlos Secchin, ao discordar da interpretação de "É Ela", confunde a data da publicação em livro de "A Confederação dos Tamoios" (1856) com sua difusão. Não se sabe se por desconhecimento de causa ou por omissão, deixou de informar que partes desse texto, redigido em 1836 ou 1837, circularam nos primeiros e terceiros números da "Revista Nacional e Estrangeira", de 1839 e 1840 (cf. Hélio Lopes "A Divisão das Águas", Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas).
1856 foi uma data programada por Magalhães e Porto Alegre visando à reprodução da expectativa criada em torno de "Suspiros Poéticos e Saudades" como a primeira poesia nacional. Nesse sentido, certas notas da "Revista Guanabara", anteriores àquela data oficial, reproduzem a informação de que determinado canto já teria sido concluído (nº 8/1851: sétimo canto pronto; nº 4/1852: nono canto pronto; nº 7/1854: Magalhães traz o poema sobre os tamoios). Como em 1836, nesse período da publicação das notas, o autor encontrava-se fora do país, agora enquanto cônsul no reino das Duas Sicílias. Sua passagem pelo Brasil, antes de ser transferido para a Sardenha, especialmente para lançar o livro, coincide com um momento em que se discutia a possibilidade de se desenvolver um épico nacional. A edição em livro esperava consolidar a fama do autor também nesse gênero.
Princípio fundamental da poesia de Álvares de Azevedo, a binomia pretendia, dito sumariamente, tanto abalar as bases fundamentais do indianismo quanto criticar a própria poética, desembocando na autoparódia. A remissão de "É Ela" (cuja interpretação que produzi difere substancialmente daquela oferecida pelo poeta Secchin no poema "É Ele", Revista "Poesia Sempre") à personagem Lindóia é apenas uma das peças que satirizam não apenas Magalhães, como também Gonçalves Dias e o próprio sátiro. Nesse sentido, a aposta de Secchin que os estilos da representação, em "Lira dos Vinte Anos", se encontrem "a léguas de distância" da ironia, contraria essa poética, já que a mistura estilística decorre naturalmente da famigerada "reflexão" romântica. Dizendo o mesmo com outras palavras, o afastamento da ironia engessa a obra nos padrões tradicionais da poética, acabando por recusar seu aspecto binômico.
Entretanto a negação do aspecto crítico é bastante coerente com a perspectiva contemporânea. No plano moral, a recepção dessa obra (para um estudo sobre essa recepção, ver João Adolfo Hansen - "Etiqueta, Invenção e Rodapé. Introdução a Sousândrade. O Guesa", inédito) renova a higienização da binomia pela estupidificação da conduta de Azevedo enquanto leitor. Os argumentos de certa tendência da crítica em favor de que o poeta não tivesse lido Kant, Herder, Schiller e, agora, o insignificante Magalhães, tornam-se fundamentais para remetê-lo a um suposto período primordial na pré-história da inteligência brasileira. Só assim os clichês "precursor" e "sucessor" puderam produzir um nacionalista melancolicamente afeminado e outro debochado e viril, e uma gênese do pensamento brasileiro outrora ingênuo contra a perspicácia do contemporâneo. Diante do desmanche das economias nacionais, parece que chegou o tempo de transformarem a binomia corrosiva em precursora do desconstrutivismo.

Cilaine Alves é autora de "O Belo e o Disforme: Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica" (Edusp).

Folha de São Paulo

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