quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Quebra-cabeça cósmico

12/Dez/98
João Paulo Monteiro

Um livro diferente. Primeiro, porque começou por ser escrito como uma série para a televisão (holandesa), depois, porque se estrutura em duas partes completamente diversas entre si, sendo uma formada por seis entrevistas com diferentes pensadores e outra por uma mesa redonda com todos os entrevistados. Há dois temas dominantes, que o tempo todo se entrecruzam: a consciência humana e a evolução das espécies. Ou seja, o tema quente destes anos 90 (nos quais saíram dúzias de livros sobre os problemas da consciência) e o tema quente de 1859 (ano em que saiu "A Origem das Espécies", de Charles Darwin) -só que a evolução darwiniana apenas agora está tendo a atenção "filosófica" que merece.Só dois dos participantes são filósofos, Stephen Toulmin e Daniel Dennett. Os outros são um neurologista, Oliver Sacks, um paleontólogo, Stephen Jay Gould, um físico, Freeman Dyson, e um bioquímico, Rupert Sheldrake. Mas a própria interdisciplinaridade intrínseca do volume resultante desse variado diálogo leva naturalmente à reflexão filosófica. E, além disso, os entrevistados que não são filósofos de profissão têm preocupações teóricas de um nível tal que irresistivelmente os conduz para o plano da filosofia.A "maravilhosa obra do acaso" ("a glorious accident" no título original) é o "acidente cósmico" da presença do homem no mundo, com toda a inteligência e ao mesmo tempo as limitações que tem, um acidente "glorioso" na medida em que deriva parcialmente do acaso, de muitos acasos, e mesmo assim consegue ser um fenômeno absolutamente espantoso, um evento extraordinário que merece todo o deslumbramento, toda a sensação de maravilha com que costuma ser contemplado. Se não somos especiais pela intenção de nossa criação, somo-lo pela nossa natureza e pela maneira como esta se insere na natureza em geral.Nesse conjunto de pensadores tão diferentes há uma característica comum: a prioridade e a expansão da idéia evolucionista, para além de seu domínio central na biologia (representada por Gould, para o qual a teoria evolutiva é "uma mistura maravilhosa de ciência e narrativa") e no domínio menos fundamental, embora igualmente significativo, da evolução cultural e científica (velho tema de Toulmin). Essa idéia exerce influência a jusante dessa corrente mais clássica, na explicação da consciência como produto da seleção natural (Dennett e de certo modo Sacks), e a montante dessa corrente, no conceito de uma evolução cósmica muito anterior à formação da vida, na teoria da "causação formativa" de Sheldrake e no consequente ceticismo acerca da eternidade das leis da física -e até mesmo na concepção, sugerida por Dyson, de "um Deus que evolui junto com o universo".Apesar das naturais e às vezes profundas divergências entre esses pensadores de raízes tão diversas, na mesa redonda que realizaram verificou-se um relativo consenso, não apenas quanto à importância a atribuir ao paradigma darwiniano, mas também quanto à maneira como deve ser entendido o conceito de evolução. Quanto a tal aspecto, a tônica é dada sobretudo por Gould, em suas quatro críticas principais às modernas deformações dessa idéia: a evolução como "progresso", com a espécie humana "no topo dessa pilha biológica", como governada por um determinismo, como processo necessariamente gradual, e como ideologia adaptacionista ("a idéia de que tudo o que acontece está fundamentalmente certo e ocorre por uma razão"). Nem todos aceitam todos os pormenores dessa concepção evolutiva, mas o espírito que anima esses cientistas e filósofos é o espírito "pós-moderno" (embora apenas Toulmin tenha essa referência explícita) do reconhecimento da contingência como marca crucial tanto do saber como do acontecer mundano, na evolução natural ou histórica.Quanto a muitas questões, não há qualquer acordo entre esses pensadores, como por exemplo a respeito da tese de Dennett acerca da possibilidade, em princípio, de se vir um dia a construir uma máquina dotada de consciência -aqui o autor de "Consciousness Explained" fica mais ou menos isolado. Tal como Sheldrake fica isolado quanto a algumas de suas mais caras teses. Mas todos concordam em pensar os problemas mais essenciais, como a natureza do eu e o papel das emoções, em termos que aliam os hábitos de análise conceitual típicos da tradição anglo-saxônica a uma perspectiva profundamente naturalista, considerando sempre o homem como parte da natureza -uma espécie de "naturalismo analítico", talvez. Nenhum deles pensa em recorrer às antigas formas de repúdio ao naturalismo para explicar seja o que for, desde a consciência humana à harmonia do cosmos. Para todos eles, o paradigma racionalmente aceitável é um paradigma darwiniano.No mesmo ano de 1995, em que foi publicada na Holanda a edição original deste livro, saiu nos EUA um novo livro de Dennett sobre a teoria da evolução, chamado "Darwin's Dangerous Idea" ("A Perigosa Idéia de Darwin", Ed. Rocco). Essa idéia "perigosa" é a própria idéia de uma evolução onde tudo acontece, não por puro acaso, mas, como reza o título de outra obra fundamental, por "Acaso e Necessidade" (Jacques Monod). Isto é, a seleção natural faz da evolução das espécies uma espécie de "algoritmo", que realiza sua tarefa -a construção de um mundo cheio de espécies adaptadas a seus ambientes naturais-, sem que haja um desígnio superior a governar todo o conjunto. Essa será uma das mais úteis leituras complementares para quem quiser aprofundar um pouco sua compreensão de uma perspectiva teórica que só é perigosa para as falsas noções dos que misturam a religião, ou a ideologia política, ou um duvidoso "humanismo", com os problemas do conhecimento científico e da compreensão filosófica do lugar do homem no universo.Permita-se-me aqui uma rápida nota de satisfação pessoal. Há 20 e poucos anos, publiquei na revista "Ciência e Cultura" o texto da aula inaugural que me coube fazer no departamento de filosofia da USP em 1975, com o título "Filosofia e Biologia". Houve vários patrulhamentos e agressões verbais, num ambiente intelectual de grande má vontade para com o pensamento darwiniano, como fonte relevante para a pesquisa filosófica, tal como a encontramos em Quine, Popper, Kuhn e outros filósofos que aí citei como exemplos (ainda não tinha lido "Human Understanding", de Toulmin, publicado em 1972, e o primeiro livro de Dennett, "Brainstorms", só viria a sair em 1978). Bem sei que hoje ainda há em certos meios uma hostilidade semelhante e de idêntica irracionalidade em sua base ideológica. Mas é animador que sejam publicados entre nós livros como este, reveladores da importância de que se revestiu nas últimas décadas um estilo de pensamento totalmente aberto à troca interdisciplinar entre a biologia (e o pensamento evolutivo em geral) e a reflexão filosófica.Esta é uma edição muito bem cuidada, com uma tradução competente, inclusive nas numerosas e esclarecedoras notas que acrescenta. Pequenas falhas, como traduzir "self-evident" por "auto-evidente" (pág. 45), quando em nossa língua se diz só "evidente", como é... óbvio, não chegam a diminuir o valor de um trabalho que se destaca notavelmente em meio aos disparates que muitos editores andam publicando, fazendo economias (com tradutores que aliás nem merecem o pouco que recebem) à custa da cultura que nos pertence a todos. Uma tradução cuja qualidade não chega a ser "um glorioso acidente" entre nós -mas chega a dar vontade de ser cartesianamente hiperbólico, exagerando um pouco, a ver se as coisas ao menos param de piorar...João Paulo Monteiro é professor de filosofia na Universidade de Lisboa (Portugal).
Folha de São Paulo

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