segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O QUE É POLÍTICA? FRAGMENTOS DAS OBRAS PÓSTUMAS

Elogio da política
12/Set/98
Eliana Maria De Melo Souza


A reflexão política de Hannah Arendt já deveria ser bastante conhecida do público brasileiro, quando tomamos em consideração o bom número de traduções de sua obra que circula entre nós. Se isso é verdade, como então este novo livro da pensadora, cujo título parece antes indicar uma abordagem didática, pode contribuir para um melhor conhecimento de sua original compreensão do conflituoso estar-juntos no mundo?
Os textos inéditos da autora, que ora vêm à luz, são manuscritos inacabados. Fazem parte das notas pessoais, em grande parte datilografadas e acrescidas de frases com caneta-tinteiro, que foram depositadas postumamente na seção de documentos raros da Biblioteca do Congresso, em Washington, sob a rubrica "Arendt's Papers". Quem tem a oportunidade de consultar esse material, no local em que estão classificados, passará por certo encantamento ao penetrar de modo muito direto na maneira de trabalhar de uma grande intelectual. E certamente terá vontade de partilhar esse encantamento com outros, sendo assim fiel ao desejo de sempre compartilhar da autora.
Aliás, Elisabeth Young-Bruehl demonstra muita sensibilidade ao desígnio da autora ao intitular sua excelente biografia de Arendt "For The Love of the World". Esse pertencer ao mundo, que singulariza a comunicação direta entre vida e obra em Hannah Arendt, foi um dos motivos que também levou Ursula Ludz a compilar e comentar parte dos fragmentos da obra póstuma da pensadora e divulgá-los -a edição alemã é de 1993- sob este título que pode produzir enganos.
São textos de difícil leitura, porque conservados "numa espécie de estado bruto", como diz a compiladora alemã e que a tradução não desmente. Em contrapartida, são textos luminosos, porque se apresentam de modo a enriquecer o que há de essencial em formulações que já sondamos em outros trabalhos da pensadora. Em especial, abreviam o conhecimento do longo caminho de sua reflexão que vai de "A Condição Humana" até "A Vida do Espírito", também livro póstumo.
Os comentários e notas de Ursula Ludz, que ocupam quase metade do livro, são esclarecedores, mesmo para quem não aborda o pensamento da autora pela primeira vez. Esclarecem como os manuscritos ora editados eram parte de um projeto que fracassou e que havia sido proposto a Hannah Arendt, em 1955, pelo editor alemão Piper. Este lhe havia sugerido escrever uma "Introdução à Política". As razões desse fracasso poderiam nos levar a constatar o quanto Arendt estaria distante de uma escrita com visada didática? Talvez. De todo modo, essa observação pode servir para avaliar a maneira pela qual se lê sua obra no Brasil.
Para tanto é bom lembrar, com a comentadora alemã, que Arendt "não pretende educar, mas sim convencer, sendo consciente de que o caminho que trilha pode estar equivocado, que os julgamentos e as proposições que torna públicos podem igualmente ser refutados". Desse ponto de vista, quem quiser ler aqui uma introdução científica à política ou então um programa político para a expansão da cidadania estará bem longe do propósito arendtiano.
Tanto a objetividade da ciência política quanto a prescrição da ação adaptam-se, para ela, à vida no deserto: a desertificação do mundo significa a perda da possibilidade da convivência humana no plural, perda da possibilidade de começar juntos um novo sentido de liberdade. Por isso, o constante recurso de Arendt à pólis ateniense não pode ser interpretado como um modelo, teórico ou pragmático; é antes uma experiência única, sem volta, uma referência para se pensar a coisa política como a esfera da experiência humana da pluralidade. Acrescente-se, de passagem, que a noção de "isonomia", para ela, não é igualdade perante a lei, mas a condição igual de aparição no espaço público, que é sempre plural.
Isso dito, não se pode esquecer que também são textos que guardam certa marca do tempo em que foram escritos e revelam o percurso do pensamento de Hannah Arendt ao longo dos anos 50. Em primeiro lugar, estão presentes a possibilidade de uma terceira guerra mundial e o uso da bomba atômica, mas também a virulência do anticomunismo americano, as novidades no projeto socialista com a revolução húngara e o relatório Krutchev. Período único em que ela se preocupou com o legado de Marx, aliando-o à tradição da filosofia política.
Esse pano de fundo histórico, ora implícito ora explícito, pode dar ao livro um tom datado e assegurar munição para aqueles que preferem acentuar a contiguidade liberal de um pensamento que se apóia na prudência ou na pluralidade dos pontos de vista. A afirmação, lida à certa altura, de que "o ideal socialista de um estágio final da humanidade sem Estado, o que quer dizer, para Marx, sem política, não é de modo algum utópico, é simplesmente aterrorizador" pode levar a desconsiderar seu deliberado afastamento de qualquer concepção finalista da história.
Tanto na França quanto no Brasil, foram os homens de inserção política liberal que se empenharam em divulgar a obra de Hannah Arendt. Raymond Aron e Celso Lafer tentaram dialogar com uma das mais importantes pensadoras do século 20. Se o significado do liberalismo para a história política francesa não tem motivos para confusões ou ambiguidades -até o 1848 francês não seria nada sem a intervenção liberal emergente-, no Brasil parece sempre difícil levar a sério o liberalismo que aqui se adaptou. Aqui, quando se fala de liberalismo só se considera seu aspecto econômico, a chamada liberdade de mercado da iniciativa privada, esquecem-se dos direitos do indivíduo. Tudo se passa como se, com nossos melhores liberais ou com nossos melhores marxistas, não fosse possível conviver no mesmo espaço. Uma barricada se ergueu e círculos fechados se instalaram.
Este livro, diga-se, pode servir para se aprofundar num pensamento que está muito interessado em elogiar a política, em contribuir para que se desfaçam os preconceitos com relação à ação e à fala políticas, para se pensar a apatia e a desertificação do mundo. Aliás, o que há de "novo" neste livro de Hannah Arendt é o primoroso emprego metafórico -lembremos que, como ela já afirmou, "as metáforas constituem o pão de cada dia de todo pensamento conceitual"- da relação assimétrica entre deserto e oásis. O deserto, ou a ausência de mundo, portanto, ausência desse espaço intermediário em que vivem os homens no plural, e o oásis, esse espaço em que cada um de nós pode respirar em meio ao deserto, sem se reconciliar com o "ressecamento" do mundo, permanecem sempre intactos.
Para ela, um mundo sem política é sinônimo de vida adaptada às condições do deserto. Daí que o elogio da política como espaço da pluralidade é sem dúvida precioso nesta época em que reina o consenso, um pensamento homogêneo, uniforme e unânime.
Apreciaremos com toda justeza o pensamento de Hannah Arendt se, ao lê-la, guiarmo-nos ao que ela mesmo disse a respeito de Lessing. Este "não pretendia comunicar conhecimentos, mas estimular outras pessoas ao pensamento independente, e isso sem nenhum outro propósito senão o de suscitar um diálogo entre pensadores. O pensamento de Lessing não é um falar consigo mesmo, mas sim a antecipação de um falar com outros, eis por que ele é essencialmente polêmico".

Eliana Maria de Melo Souza é professora no departamento de sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara).

Folha de São Paulo

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