segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O GRANDE, O PEQUENO E A MENTE HUMANA

ROGER PENROSE
Para além do computável
14/Nov/98
Newton Da Costa

Roger Penrose publicou dois livros muito conhecidos e discutidos, "The Emperor's New Mind" ("A Mente Nova do Rei", Campus) em 1989 e "Shadows of the Mind" ("Sombras da Mente") em 1994. Tais obras, na verdade, não são propriamente de divulgação, como "Uma Breve História do Tempo" (Rocco) de S. Hawking e "Caos" (Campus) de J. Gleick. Pelo contrário, nelas Penrose expõe idéias extremamente originais sobre diversos temas, englobando a relatividade, a mecânica quântica, a cosmologia, a teoria da mente e, em particular, a IA (inteligência artificial).
Nos três primeiros capítulos do livro, Penrose resume suas concepções apresentadas nas obras de 89 e 94; nos três capítulos seguintes, A. Shimony, N. Cartwright e S. Hawking fazem críticas e comentários às indagações de Penrose. Finalmente, no capítulo 7, ele responde a seus críticos. O livro ainda inclui uma interessante introdução, redigida pelo organizador M. Longair. A tradução é confiável e bem-vinda, e assim o leitor brasileiro terá em mãos um sumário dos pontos de vista do notável matemático e físico inglês, além de uma apresentação elementar e atraente de certos tópicos da física e da IA atuais (1).
Penrose tornou-se internacionalmente conhecido pelas suas pesquisas em astrofísica e cosmologia, além de algumas contribuições para a matemática. Um de seus resultados mais célebres compõe-se de dois teoremas -em parte decorrentes de sua colaboração com Hawking- referentes aos buracos negros e ao Big Bang. Um dos teoremas afirma, falando por alto, que, segundo os princípios da relatividade geral clássica, no interior de um buraco negro, a curvatura do espaço-tempo (ou a densidade da matéria) torna-se infinita, há uma singularidade. O outro teorema assevera que, nas mesmas condições, existe também uma singularidade física análoga na origem (Big Bang) dos modelos cosmológicos padrão. Tais resultados foram obtidos, é interessante notar, muito antes de praticamente se confirmar a existência de buracos negros reais.
No primeiro capítulo ("Espaço-Tempo e Cosmologia"), Penrose aborda basicamente questões referentes à relatividade e à cosmologia. Sua posição geral é algo surpreendente, pois ele defende a existência de um mundo matemático platônico que gera, por assim dizer, o mundo físico. Isso se opõe ao que normalmente se crê, quando se mantém que as investigações sobre o universo é que nos induzem a construir determinadas teorias matemáticas (cálculo diferencial e integral, teoria do potencial, análise vetorial etc.); ou seja, que a matemática nos ajuda a compreender o real, mas que as estruturas matemáticas não são os componentes últimos do universo.
A explanação de Penrose sobre o espaço-tempo e a cosmologia afigura-se sumamente pessoal. Ele considera certos modelos do universo, definidos pelas equações de Einstein (que descrevem a forma do universo como um todo), trata dos cones de luz da relatividade restrita, discorre sobre os tensores de Weyl, de Ricci e de Riemann etc., sempre de modo razoavelmente claro e peculiar. Todas as noções discutidas mostram-se, obviamente, necessárias para que as teses de Penrose possam ser examinadas e defendidas. No final do capítulo, uma passagem ilustra bem seu modo particular de ver: "Tenho falado de precisão -como a matemática e a física concordam entre si com uma precisão extraordinária. Também falei sobre a segunda lei da termodinâmica, que muitas vezes é tida como uma lei um tanto vaga -ela trata de aleatoriedade e acaso-, mas, mesmo assim, há algo de muito preciso escondido atrás dessa lei. Quando aplicada ao universo, ela tem a ver com a precisão com que o estado inicial foi determinado. Essa precisão deve ter algo a ver com a união da teoria quântica com a relatividade geral, uma teoria de que não dispomos. No próximo capítulo, no entanto, vou dizer-lhes algo sobre o tipo de coisa que deve estar implicado em tal teoria".
O capítulo 2 ("Os Mistérios da Física Quântica") destina-se à discussão dos fundamentos da mecânica quântica. Tópicos variados são debatidos, tais como o colapso da função de onda, o problema do gato de Schrödinger e o significado da "experiência" de Elitzur-Vaidman. Mostra-se que a mecânica quântica é intrinsecamente diferente da clássica e que a passagem da primeira para a segunda, de acordo com Penrose, oferece obstáculos que ainda não foram completamente superados. Ele acha que surgirá uma nova teoria que unificará a relatividade e a mecânica quântica, isto é, uma futura teoria da gravitação quântica; todavia, ele não aprecia as tentativas unificadoras já em fase inicial ou parcial de desenvolvimento, como a teoria das supercordas. Embora aqui não se possa entrar em maiores detalhes sobre o pensamento do autor, o certo é que em quase tudo o que sustenta sobre a teoria quântica, ele é original.
No capítulo 3 ("A Física e a Mente"), Penrose oferece um panorama geral de sua concepção da mente. Sua tese central é que a mente pode ser explicada em termos da física e que ela não é um computador tradicional, uma espécie de máquina de Turing. Apresentam-se quatro alternativas no tocante à natureza da mente: "a) todo pensamento é computação; em particular, sentimentos de receptividade consciente são evocados simplesmente pela execução de computações adequadas; b) a receptividade é uma característica da ação física do cérebro; enquanto qualquer ação física pode ser simulada computacionalmente, a simulação computacional não pode por si mesma evocar receptividade; c) a adequada ação física do cérebro evoca receptividade, mas essa ação física não pode sequer ser corretamente simulada computacionalmente; d) a receptividade não pode ser explicada nem em termos físicos, nem em termos computacionais, nem por quaisquer outros termos científicos".
Penrose filia-se à corrente do terceiro item. No entanto, para sustentar sua tese, ele apela para resultados variados da física e até da lógica. Assim, recorre ao que chama de uma forma do teorema de incompletude de Gödel (-Turing). No fundo, esse teorema consiste em determinado artifício que os matemáticos batizaram de "diagonalização", que hoje pode ser encontrado em qualquer texto de lógica ou computação que trate da teoria da recursão.
Diversos dos temas centrais para Penrose são delicados e, às vezes, um tanto imprecisos, dado que pertencem às fronteiras da ciência estabelecida. Assim, em "A Mente Nova do Rei", ele aceita como patente a tese de que a natureza produz processos não computáveis, embora nenhum em nível clássico (dentro dos domínios da física tradicional, não-quântica, digamos a mecânica newtoniana). Porém, por meio de métodos algo indiretos, pode-se demonstrar que tais processos ocorrem mesmo em mecânica clássica, o que pode parecer à primeira vista surpreendente (2). Na presente obra, contudo, Penrose não toca no assunto.
Muitas de suas propostas não nos parecem conclusivas. É preciso que se note, de início, que o platonismo inerente à sua postura não parece ser necessário para estabelecer suas teses referentes à IA. Por outro lado, sua maneira de considerar a mecânica quântica como em princípio errada (devendo ser substituída por uma teoria inteiramente nova) mostra-se, ao que tudo indica, questionável. Finalmente, o papel da biologia para a solução dos problemas da mente não é sequer mencionado, pois aparentemente essa ciência não seria imprescindível para a investigação de semelhantes questões (talvez pela circunstância de que, para Penrose, a biologia reduz-se à física). Aliás, Shimony, Cartwright e Hawking fazem observações similares em suas ponderações críticas. Por seu turno, as respostas de Penrose são dignas de meditação, embora não consigam convencer totalmente.
Não há dúvida de que a concepção de Penrose é de fundamental importância sob todos os aspectos. Porém, ela deve ser vista mais como um plano ou programa de pesquisa do que como uma teoria propriamente dita. Seguramente esse programa nos conduzirá a novas diretrizes e a resultados surpreendentes.
O livro de Penrose não é de fácil leitura para leigos; no entanto, todos, leigos ou não, poderão participar de sua aventura rumo ao conhecimento da natureza e da mente.

Notas:
1. Dois erros de impressão merecem atenção: na pág. 120, em vez de "sentença P1" deve-se ler "sentença Pi1"; na pág. 121, o procedimento A está mal definido, pois parando ele ou não, daria sempre o mesmo resultado. Isso pode ser facilmente corrigido pelo leitor atento.
2. Cf. Newton da Costa e Francisco Doria, "Classical Physics and Penrose's Thesis", in "Foundations of Physics Letters", vol. 4, nº 4 (1991), págs. 363-373.

Newton C. A. da Costa é professor do departamento de filosofia da USP e autor, entre outros, de "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial) e "Logiques Classiques et Non Classiques" (Masson).
Folha de São Paulo

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