segunda-feira, 27 de outubro de 2008

NO REINO DO DESEJADO. A CONSTRUÇÃO DO SEBASTIANISMO EM PORTUGAL - SÉCULOS 16 E 17

JACQUELINE HERMANN
À espera da redenção nacional
10/Out/98
Evaldo Cabral De Mello


Num momento de mau humor com o país onde estava acreditado, coisa muito comum em diplomatas, Lord Tirawly, embaixador de Sua Majestade Britânica junto à Corte de D. João 5º, escreveu certa vez que os portugueses se dividiam entre os que esperavam a vinda do Messias e os que esperavam o retorno de D. Sebastião. Se o representante inglês não chegou a perceber a conexão histórica entre ambas crenças, é certo que atinou com um aspecto fundamental da existência portuguesa durante o Antigo Regime: a espera de uma redenção nacional que viria não de um esforço coletivo, mas de uma dádiva sobrenatural, de um novo milagre de Ourique.
Pois, para além do debate ideológico que o sebastianismo provocou, de Oliveira Martins a Antônio Sérgio, seu interesse para um historiador do século 20 reside principalmente no seu caráter de duradoura estrutura mental, para usar a terminologia corriqueira em vigor. O livro de Jacqueline Hermann propõe-se a reconstruir o nascimento dessa estrutura. Para tanto, ela trafega com versatilidade entre os quatro ou cinco blocos de história portuguesa sobre os quais ergueu seu estudo: o bandarrismo, a tragédia de Alcácer-Quebir, a sacralidade deficiente dos reis portugueses, o mito do Encoberto e a elaboração culta e popular da lenda. Daí que a autora ofereça ao leitor brasileiro uma introdução utilíssima a um assunto, a qual tem por outro lado o mérito de atrair a atenção do incauto para o núcleo original do sebastianismo, antes que ele se aventure a ver nos sebastianismos bastardos do Nordeste uma das tantas manifestações da identidade nacional que, a partir do Modernismo, vem sendo forjada entre nós, quem sabe como refúgio aos traumas da transformação do país em nação industrial.
O ponto forte da obra de Jacqueline Hermann consiste na sua constante preocupação em frisar a circularidade do sebastianismo culto e do sebastianismo popular, o que, como bem destaca, confere-lhes uma grande riqueza de expressão. Circularidade que havia escapado, até onde sei, aos estudiosos lusitanos do tema, em decorrência inclusive do fato de a crendice sebástica encontrar-se atualmente meio esquecida no Portugal modernoso da União Européia. Que as trovas do pobre sapateiro de Trancoso tenha-se tornado o texto profético de D. João de Castro ou de Bocarro ainda pode parecer aceitável, mas que tenha servido para as elaborações de uma cabeça da qualidade da de Antônio Vieira, eis algo definitivamente pouco plausível, senão aberrante.
E, contudo, não há como negá-lo. O paradoxo inscreve-se no próprio "papel forte" que o jesuíta escreveu para D. João 4º em 1648 em favor da entrega do Nordeste aos holandeses. Ao cabo de uma argumentação de cerrada travação lógica, em que defendeu a assinatura do tratado que Sousa Coutinho vinha de assinar com os Estados Gerais, Vieira rematou seu memorial frisando que, a longo prazo, o acordo não impediria a Coroa de reaver a região mediante outra guerra, aquela que, segundo o profetismo sebastianista, de que ele era então o mais eminente formulador, daria "o império do mundo" ao rei de Portugal. Destarte, o documento que ficará na história luso-brasileira como um dos mais altos exemplos de realismo político fechava-se numa -para nós inesperada- nota de desvairada feição messiânica. É certo que a afirmação tinha o objetivo de dourar a pílula para consumo do sentimento nacionalista do Reino, que se opunha ao negociado em Haia; ela tinha, por conseguinte, uma conotação de oportunidade política. Não obsta, contudo, que Vieira acreditasse piamente, como tantos outros portugueses do seu tempo -e a ponto de ir bater com os costados nos cárceres inquisitoriais- no papel excepcional que estaria reservado a seu país na história mundial.
Dois momentos me parecem especialmente felizes no livro de Jacqueline Hermann. O primeiro diz respeito ao bandarrismo como a resposta à expansão ultramarina de uma cultura popular eivada não só de messianismo judaico, mercê da intensa interação entre cristãos-velhos e novos, mas também de messianismos europeus: o celta, do ciclo arturiano, o do Rei Encoberto, de raízes difusas, e o joaquimista, que em Portugal seria reelaborado pelos franciscanos e desembocaria no culto do Imperador do Divino. (Uma tese cuja validade não se pode garantir pretenderia mesmo que a escolha por Pedro 1º do título de Imperador teria visado sobretudo a mobilizar em favor da nova monarquia americana o culto popular ao Imperador do Divino.)
O segundo momento é a revisão realizada pela autora na versão tradicional, avalizada pela historiografia liberal e oitocentista, de que D. Sebastião fora a vítima de uma educação beata, dos irmãos Camaras e dos jesuítas. Na realidade, como demonstra a autora, El Rei foi o prisioneiro voluntário de um mito e da política impingida por um grupo de nobres que visava a realizá-lo: a conquista do norte da África.
Menos convincente, embora digna de ser devidamente aprofundada, pareceu-me a tese da elaboração de uma sacralidade específica dos reis portugueses para conpensá-los da carência da sacralidade pela unção dos Santos Óleos. Que houve essa sacralidade específica é evidente, mas que ela tenha sido geralmente percebida como a compensação de uma carência levanta problema, tanto assim que, havendo o Regente D. Pedro obtido do Papa o direito à unção (pág. 137), ele não foi jamais exercido. A iniciativa de solicitá-la pode ter constituído (mas isto é uma mera hipótese que avanço) um dos cavalos-de-batalha da luta pelo poder que se travou, entre o falecimento de D. Duarte e a aclamação de D. Afonso 5º, entre facções da família real e da alta nobreza e que teve o desfecho trágico da batalha da Alfarrobeira. Por outro lado, não se pode descartar a tese de José Mattoso acerca da possibilidade de ter havido unção no tocante aos reis da primeira dinastia. Uma releitura da bula "Sedes Apostólica" talvez esclareça o problema. Se os monarcas borgonheses gozaram do privilégio, o provável é que a bula faça alusão ao fato, pois neste caso se trataria apenas para o Vaticano de confirmar um precedente e não de criar direito novo.
Dito o que, permito-me entrar no menos importante, isto é, no varejo historiográfico. Se as trovas da Bandarra foram redigidas entre 1520 e 1530, o provável é que o D. João nelas profetizado tenha sido efetivamente D. João 3º e não seu filho homônimo, pai de D. Sebastião. D. João 3º foi aclamado em 1521, mas sua decisão de abandonar algumas praças marroquinas, signo do refluxo imperial, datou de mais de 20 anos depois. O cognome de "o Africano" não foi aplicado a D. João 2º, mas a D. Afonso 5º, seu pai, devido aos seus projetos bélicos no norte da África. Quanto ao infante D. Duarte, mencionado no processo de Maria de Macedo, não parece tratar-se do rei D. Duarte, mas do infante e irmão de D. João 4º que, como o Infante Santo, terminou seus dias numa masmorra, no caso espanhola. O Antônio de Sousa de Macedo que aparece denunciando a citada Maria de Macedo não era apenas o familiar do Santo Ofício e membro do Conselho de Fazenda, mas um mais importantes homens de Estado da Restauração. Havendo sido representante de D. João 4º em Londres e em Haia, ocupava, quando da denúncia, a secretaria de Estado de D. Afonso 6º. Como tantos portugueses ilustres do seu tempo, Sousa de Macedo era sebastianista. Por fim, o mosteiro de Yuste, aonde o imperador Carlos 5º retirou-se no fim da vida, não se localiza na Alemanha, mas na Extremadura espanhola, podendo ser visitado.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor, entre outros livros, de "Rubro Veio" (Topbooks).

Folha de São Paulo

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