segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Inúteis para o mundo

Vera Da Silva Telles


Essa é a condição em que vivem parcelas crescentes de trabalhadores, que não encontram um lugar estável e reconhecido na sociedade, que transitam à margem do trabalho e das formas de troca socialmente reconhecidas. São os desempregados de longa duração, jovens à procura de emprego, empregados de modo precário e intermitente, gente que se tornou não-empregável e supérflua na convergência entre o encolhimento dos empregos e as novas competências e qualificações exigidas no ciclo atual de reorganização do capitalismo mundial. Esse é o núcleo da nova questão social, segundo Robert Castel. Publicado na França em 1995, seu livro tornou-se referência obrigatória no debate contemporâneo sobre o futuro da "sociedade do trabalho" e do Estado social. A importância desse livro está numa abordagem que desloca os termos como o problema da exclusão social é usualmente percebido, pondo em foco o sentido histórico e político do desmanche dos direitos sociais que vem ocorrendo nos tempos atuais.
O cenário descrito por Castel é conhecido por qualquer leitor medianamente informado sobre os efeitos sociais perversos das mudanças em curso no mundo contemporâneo. Mas a questão que o autor nos propõe nada tem de trivial. É a condição salarial que vem sendo desestabilizada e isso exige um esforço de deciframento. O que mostra a fecundidade de uma análise estruturada a partir do trabalho, "não como relação técnica de produção, mas como um suporte privilegiado de inscrição na estrutura social". O eixo de seu empreendimento são as relações entre trabalho, redes de sociabilidade e sistemas de proteção que "cobrem" o indivíduo diante dos acasos da existência. O trabalho, portanto, é mais do que trabalho, pois em torno dele estruturaram-se redes de relações que configuram formas de sociabilidade, referências de identidade e modos de reconhecimento público.
É esse feixe de relações que define modernamente a condição salarial. Tem como suposto a mediação dos direitos e garantias sociais, mediação construída histórica e politicamente por mais de 50 anos, entre as décadas finais do século 19 e os anos do pós-guerra desse século -ao menos no exemplo francês, que é o foco da análise de Castel. É essa articulação entre trabalho, direitos e proteção social que vem sendo desfeita. E é nessa desmontagem que se configura a questão que Castel procura desvendar, ou seja, uma situação de vulnerabilidade de massa, que evoca situações que se imaginavam definitivamente superadas e que se instalam nos núcleos dinâmicos da modernidade capitalista. O que hoje se designa sob o termo de exclusão, diz Castel, corresponde a processos de "desfiliação", que desconectam indivíduos e grupos sociais das redes de sociabilidade e integração social articuladas em torno do trabalho.
Essa noção, desfiliação, é o que permite apreender a dinâmica que desestabiliza relações sociais estruturadas e que afeta a todos, aí incluindo os que estão integrados nas formas regulares e estáveis de trabalho por conta do desemprego, da invalidação de suas competências diante das novas formas de gestão do trabalho ou da precarização de suas condições de trabalho engendrada por formas diversas no que hoje se convencionou chamar flexibilização dos direitos e normas contratuais, configurando situações que mais se parecem com antigas formas de contratação, "contratos de aluguel" feitos e desfeitos conforme as circunstâncias do mercado, quando "então o status do trabalhador se diluía diante das pressões do mercado". "Flexibilização" significa na verdade uma reciclagem da utopia liberal de um mundo inteiramente ordenado pela contratualização das relações sociais, mas que no mesmo passo reativa o sentido dilemático de uma situação na qual a condição salarial, privada de proteções e garantias sociais, não só é vulnerável, mas é impossível de ser vivida. É do centro, diz Castel, de onde parte a "onda de choque que atravessa a estrutura social". E se a questão social se apresenta explicitamente nas margens da vida social, coloca em questão o conjunto da sociedade na medida em que abala o núcleo das relações sociais.
Mas é por isso também que a atual situação de vulnerabilidade social reabre a aporia fundadora de nossa modernidade. A questão social, diz Castel, "é a aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura". Os modos pelos quais essa aporia se realizou no correr da história e os dispositivos mobilizados e inventados para resolvê-la, as figuras historicamente construídas da questão social, são na verdade o que permite colocar a situação atual em diálogo com a história passada, não simplesmente como seus antecedentes, mas como forma de elucidação do próprio presente. É com essa perspectiva que Castel remonta aos primórdios da aventura moderna, quando a questão social se armava em torno das figuras dos indigentes, mendicantes e dos vagabundos que povoavam a paisagem social, sob o signo do infortúnio daqueles que não encontravam lugar nas formas tradicionais de organização do trabalho, tampouco nos critérios estabelecidos de proteção. Essa história é contada para assinalar os vínculos do presente com o passado, a partir de uma mesma problematização, feixe de questões que se reformulam e se redefinem, mas que permanecem vivas ainda hoje. Mas é também contada para conferir inteligibilidade à novidade da moderna questão social, quando esta se reorganiza a partir do trabalho, instalando-se no núcleo mesmo da modernidade liberal, colocando em evidência a impotência do contrato para fundar uma ordem estável e pondo em xeque, por isso mesmo, a utopia liberal de uma sociedade bem-ordenada entre as regulações econômicas do mercado e as regulações morais por via de formas diversas de tutela e patronagem.
É essa história que fornece uma medida para avaliar a novidade que representou a montagem do Estado social por via de um conjunto de regulações não-mercantis, pelas quais se tentará um equilíbrio sempre difícil, sempre conflitivo e sempre negociado entre forças sociais em conflito, entre mercado e trabalho, entre a lógica do lucro e as exigências de solidariedade. A partir daí, a condição salarial se redefine por inteiro, na medida em que é inscrita numa ordem de direito que reconhece o trabalhador como membro de um coletivo dotado de status social para além da dimensão individual do contrato de trabalho, de tal modo que o salário deixa de ser retribuição pontual de uma tarefa, pois a ele estão indexadas garantias contra os azares da vida e as prerrogativas para uma participação ampliada na vida social. É essa história que fornece um critério para avaliar, hoje, o sentido da erosão desse conjunto de mediações construídas entre sociedade, economia e Estado -a rigor é o estatuto da condição salarial que está sendo posto em xeque por essa espécie de captura do social pelo econômico e que se expressa na adaptação dos direitos às exigências de eficácia e competitividade do mercado, adaptação que a rigor significa a sua erosão, por conta da multiplicação de situações de trabalho e de vida que escapam aos procedimentos estabelecidos de regulação pública.
A questão social não se reduz à constatação da tragédia social dos excluídos, tampouco se confunde com formas de "gestão de problemas sociais" por meio de políticas focalizadas, seletivas e localizadas e vai além do apelo a uma vaga solidariedade moral. Pois o que está em pauta nos tempos atuais é a exigência de renegociar o difícil equilíbrio entre mercado e trabalho e construir uma figura do Estado social à altura dos desafios atuais. A não ser que se aceite como inelutável que parcelas ponderáveis da população sejam colocadas fora do jogo social em nome das exigências da competitividade econômica, isso supõe, de partida, uma aposta quanto à possibilidade de se "viver em conjunto". A questão social, diz Castel, "é um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência". É esse o desafio que está recolocado nos tempos atuais.

Vera da Silva Telles é professora do departamento de sociologia da USP e pesquisadora do Nedic-USP.

Folha de São Paulo

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