domingo, 19 de outubro de 2008

Concebido com Maldade

Vingança é fonte de inspiração em "Concebido com Maldade"
Autor: Cynara Menezes
Assunto: LITERATURA

Folha de São Paulo

da Reportagem Local
Alguns dos triângulos mostrados em "Amor a Três" curiosamente também aparecem em "Concebido com Maldade", de Louise Desalvo, que trata da vingança como origem da obra literária -o que só vem a fortalecer o confronto entre a realidade e a "felicidade a três" proposta pelos autores do primeiro.
A partir da biografia dos envolvidos, Desalvo mostra os ardis de vários autores para ocultar, sob o nome de personagens fictícios, seres de carne e osso -muitas vezes amigos ou amantes seus- que desejam detratar até a destruição.
Como Ernest Hemingway, que enfureceu seus amigos com "O Sol Também se Levanta" a ponto de circularem boatos em Paris de que planejavam uma desforra escrevendo um outro livro que se chamaria "Six Characters in Search of an Autor - With a Gun Apiece" (Seis Personagens em Busca de Um Autor - Cada Um Com Um Revólver).
Ou o retrato vingativo de Chopin feito por sua amante Georges Sand em "Lucrezia Floriani", no qual ataca o ciúme do músico travestido de personagem (o príncipe Karol). Sand ainda o ridicularizava mais: forçava Chopin a fazer leituras públicas da obra.
Desalvo teoriza que, na verdade, em muitos casos, por mais cruel que seja admitir, o sentimento bem menos nobre da vingança em detrimento da bela inspiração foi o que tornou possível a escritura de muitas obras-primas.
Ela se detém em quatro casos exemplares: Leonard e Virginia Woolf e a composição de "The Wise Virgins"; D.H.Lawrence e Ottoline Morrell e "Mulheres Apaixonadas"; Djuna Barnes e "The Antiphon"; e Henry e June Miller em "Crazy Cock".
O círculo de Bloomsbury, que reuniu vários artistas e escritores ingleses a partir de 1905, parecia ser, com seus costumes avançados e sua revolta contra a repressão sexual da época, um lugar propício tanto para o surgimento de triângulos (ou quadriláteros) amorosos quanto para choques entre egos, que acabavam resultando em vingança.
Virginia Woolf, seu marido Leonard e Ottoline Morrell faziam parte do grupo, assim como Dora Carrington, Lytton Strachey, Vanessa Bell, Duncan Grant e Bunny Garnett (ver texto no alto, à esq.).
Quando escreveu seu romance "The Wise Virgins", Leonard só poupou Strachey, mais ligado a ele. Virginia foi o alvo principal das críticas do marido, desde suas cartas até seu jeito de falar e caminhar, sem contar a fracassada lua-de-mel dos dois, leitmotiv do livro.
A escritora ficou deprimida ao ler o manuscrito, mas os retratos que fez dele em suas obras são sempre "complexos e simpáticos, embora, às vezes, mordazes e críticos".
O relato mais chocante trata da escritora Djuna Barnes, vítima de relações incestuosas quando criança -era molestada sexualmente pelo próprio pai, irmãos e pela avó-, das quais se vingou escrevendo a peça "The Antiphon", publicada em 58. Não era vingança, dizia, mas "justiça".
Sua personalidade, porém, e isso não podia negar, era mesmo vingativa -tanto que, segundo seu biógrafo, a arte da escrita, para ela, era como "uma execução sem sangue". Contra sua amante, Thelma Wood, produziu um retrato devastador em "Nightwood".
Não há limite para as infidelidades de Thelma/Robin Vote expostas no romance. Em certo momento, Barnes chega a colocar a amante curvada para ser sodomizada por um cachorro.
Thelma ficou tão furiosa ao ler o manuscrito que atirou uma xícara de chá em Djuna e lhe deu uma bofetada. Esperou pelo pedido de desculpas pelo livro, mas ele nunca veio.
(CM)
Livro: Concebido com Maldade
Louise Desalvo
Record 392 págs.


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