segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A Meu Esmo. 15 Poemas Desgarrados


A formação de um poeta
JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES
no espaço de alguns meses, publicaram-se quatro livros de José Paulo Paes, que, se têm interesse individualmente, em conjunto podem ser vistos numa perspectiva mais ampla. Em ''A Meu Esmo'', reúnem-se, como diz o subtítulo do volume, ''15 poemas desgarrados''. Em ''De Ontem para Hoje'', reúnem-se ainda, como também se lê em seu subtítulo, ''dez poemas desgarrados''. Já ''Gaveta de Tradutor'' apresenta uma série de traduções de poesia realizadas em ocasiões diversas, sem obediência a projetos, sendo algumas inéditas e outras publicadas em periódicos. Um quarto livro, ''Quem, eu? Um Poeta Como Outro Qualquer'', vem a ser uma autobiografia, voltada de modo especial para a atividade literária de seu autor.
Na nota liminar a ''De Ontem para Hoje'', José Paulo Paes assinala que os poemas aí coligidos (e o mesmo se deu com o volume ''A Meu Esmo'') foram escritos em diferentes épocas, sendo que alguns remontam aos anos 40, e que não foram incluídos nas coletâneas que publicou, porque ''destoavam do espírito delas''. Em relação ao volume de traduções de poesia, o autor se refere a ele como ''miscelânea''. A impressão primeira que se poderia ter do conjunto seria a de uma diversidade sem muitos laços de ordenação, a de algumas reuniões circunstanciais. A autobiografia, somando-se a essas como que antologias do disperso, também poderia levar a se pensar numa espécie de apanhado de etapas da vida de um escritor.
No entanto, talvez seja a autobiografia (com sua concisão, sua exposição sintética e direta de episódios, de pessoas, de leituras, enfim daquilo que foi essencial para o desenvolvimento do escritor) que possibilite pensar de forma encadeada, agenciada, os outros três livros _não apenas um em relação ao outro, não apenas ainda em relação à autobiografia, mas em relação mesmo com todo o conjunto da obra de José Paulo Paes. Isto sem dúvida permite uma melhor leitura destas coletâneas recentes, assim como permite manter o contato com uma importante obra que, já se estendendo por cerca de 50 anos, passa pela poesia, pela tradução e pelo ensaio.
Diante da autobiografia, que encadeia de forma clara e simples, o andamento da formação e da realização de um escritor, não se pode deixar de lembrar o texto sempre exemplar do ''Itinerário de Pasárgada'' de Manuel Bandeira. Este permanece como um texto de extrema utilidade para se compreender tanto o percurso de seu autor, quanto uma parcela de nossa história literária e o complexo cultural em que se insere a produção literária de Bandeira. Mesmo com o passar do tempo e com as inumeráveis utilizações que dele já se fizeram, continua como fonte de referência indispensável. Tendo em mente um exemplo fecundo desse porte, não há como deixar de saudar outros empreendimentos do gênero, como este de José Paulo Paes.
Em sua autobiografia, a ênfase muitas vezes é posta nas relações entre a vida prática, por assim dizer, e o empenho necessário para dar realização às intenções do escritor. Talvez este pareça o aspecto mais prosaico da biografia de um escritor, o aspecto tanto menos glamouroso quanto sem dúvida inevitável (salvo casos privilegiados). Há um outro aspecto, mais complexo, que se pode também considerar como mais interno à obra propriamente dita. Trata-se dos nexos que a elaboração de uma obra literária tem em várias dimensões _entre os vários momentos dessa obra, entre esses vários momentos e seus contemporâneos, e assim por diante. Se menos enfatizado na autobiografia de Paes, esse aspecto se insinua com a leitura conjunta dos outros três livros.
Já a coletânea de traduções esparsas, apesar de uma, por assim dizer, dupla interposição _o fato mesmo de ser tradução, isto é, de se compor de textos originariamente de outros autores, e o fato de não ter obedecido a um projeto, ficando aparentemente às ordens do acaso_, não deixa de se aliar firmemente ao contexto da atividade sistemática do autor nesse setor. Vários dos textos traduzidos se relacionam com outros trabalhos de tradução de José Paulo Paes. Além disso, sua noção da atividade de tradução traça uma linha de união entre seus diversos trabalhos nesse campo. Alguns componentes dessa noção estão expostos no texto introdutório a ''Gaveta de Tradutor'': em ''O Tradutor e a Formação do Leitor de Poesia'', fica clara sua compreensão de como essa atividade tem espaço na própria literatura da língua para a qual a tradução é feita. Esse texto dá continuidade a outros similares já publicados por José Paulo Paes e reunidos em ''Tradução: a Ponte Necessária'', entre os quais ''A Tradução Literária no Brasil'', capítulo fundamental da história literária.
No caso dos dois livros de poemas, ''A Meu Esmo'' e ''De Ontem para Hoje'', as inter-relações são mais diretas. Isto no sentido de que é possível associar os poemas ditos desgarrados com vários momentos da poesia de José Paulo Paes. Ou seja, é possível supor tal poema ligado a tal livro, aquele outro poema a outro livro. Um exemplo claro se vê em um poema incluído em ''De Ontem para Hoje'' _trata-se do poema ''Natureza Morta'', que se aproxima de um momento central (pelo menos cronologicamente) da poesia de José Paulo Paes, com a preponderância das possibilidades visuais, como em ''Anatomias'' (1967) ou ''Meia Palavra'' (1973). Desse modo, somos convidados a repercorrer uma das melhores obras poéticas da literatura contemporânea brasileira.
Ampliando o espectro, seria o caso de relacionar essas várias etapas, indicadas pelos poemas desgarrados, com seus contextos. Assim, os poemas dos primeiros livros permitem perceber uma vertente imune ao que se agrupou sob a denominação de geração de 45. Já os poemas com aproveitamento da dimensão visual e ênfase na síntese dialogam diretamente com o concretismo, sendo possível ver aí a contribuição por parte de José Paulo Paes de matizes a um momento programático. Um outro diálogo, que parece bastante proveitoso e interessante, pode estabelecer-se com outro importante poeta da mesma geração, Afonso Ávila, que também seguiu trilha bastante própria na associação com as vanguardas.
Assim, a publicação destes quatro livros de José Paulo Paes, para além de sua significação própria, propicia a sugestão para essas releituras mais amplas _a do conjunto de sua produção e a de alguns percursos dentro da poesia brasileira contemporânea. Só por essa sugestão, para além das qualidades próprias destes livros, já se pode avaliar o alcance instigador da obra de José Paulo Paes.

Júlio Castañon Guimarães é poeta, autor de ''Dois Poemas Estrangeiros'' (Tipografia do Fundo de Ouro Preto) e pesquisador do setor de filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Folha de São Paulo

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